Ano novo: vida nova, ou tudo na mesma?

Precisamos de rever a Lei de Bases da Saúde sem convicções marcadamente ideológicas e com o contributo de todos os setores.

Rever a Lei de Bases da Saúde está na agenda para 2018 e há méritos indiscutíveis em fazê-lo. Da atual lei estão ausentes desígnios importantes, como por exemplo a inovação na prestação de cuidados, a valorização do conhecimento e competências ou a adaptação das prioridades do Serviço Nacional de Saúde (SNS). O SNS surgiu focado no diagnóstico e tratamento. Hoje, feito um percurso notável, deve recentrar-se na prevenção e na melhoria da saúde física e mental e no bem-estar, distribuindo melhor a responsabilidade dos intervenientes desta missão (cidadãos, sociedade e Estado), tornando mais versátil a rigidez da sua organização atual, avaliando permanentemente para valorizar resultados positivos e dando condições para que os portugueses possam melhor promover e gerir a sua saúde.

Esta deixou de ser uma discussão reservada apenas à Saúde. As agendas e divergências ideológicas dos partidos também não completam por si só o debate necessário para grandes consensos. É fundamental abrir a discussão à sociedade e a vários setores, sob pena de ficarmos a perder e até de se sobrepor um viés ideológico que coloque em risco o propósito.

Esta discussão também não deve ser permeável a contradições. O BE — único partido que apontou prioridades a esta discussão — apresentou já várias iniciativas para o SNS no Parlamento. No entanto, não é menos relevante recordar, por exemplo, que exigem acabar com o pagamento da prestação de cuidados de saúde feitos por privados que contratualizam com o Ministério da Saúde (projeto de resolução 368/XIII) ao mesmo tempo que sugerem financiamento plurianual na Saúde (projeto de resolução 770/XIII). Por outras palavras e exemplificando: se há um aumento de necessidades em cirurgias (5%/ano, como tem sucedido) defendem não financiar cirurgias a prestadores privados para reduzir listas de espera, mas sim investir de imediato no aumento da capacidade de resposta do SNS (mais infraestruturas e mais recursos). Ao mesmo tempo requerem planeamento a longo prazo para investimento em infraestruturas e recursos que capacitem o SNS a responder. Afinal, em que ficamos? Para quê planear a longo prazo se é exigido resolver tudo a curto prazo? Não é possível conviver em complementaridade até se justificar e ser sustentável um investimento estrutural?

É inevitável emergir, neste debate, a discussão entre a prestação de cuidados pelo SNS e a complementaridade dos setores privado e social, quer porque as empresas não deverão ser dependentes e predadoras do SNS, quer porque as IPSS devem ser alvo de fiscalização mais rigorosa. Mas precisamos de todos. E precisamos desta discussão sem convicções marcadamente ideológicas e com evidência do contributo de ambos os setores.

Outro aspeto importante é não confundir o que é preciso alterar com o que já está previsto mas não é cumprido, sob pena de ficar tudo na mesma. É fácil criar soundbites com prevenção, participação, flexibilidade, integração, partilha de risco ou financiamento mediante resultados. Mas, em boa verdade, isto já está previso na lei, seja a avaliação permanente de resultados, a participação dos cidadãos na definição, planeamento e controlo dos serviços, a prevenção como prioridade ou a gestão descentralizada e participada.

Faça-se a pergunta certa: se está já previsto na lei, por que não é cumprido? Onde está a “avaliação permanente de resultados” nas organizações? E o apoio à “investigação com interesse para a saúde”? E o que significa “gestão descentralizada e participada”?

A discussão deverá conviver na diversidade, no diálogo, na partilha, não como uma ameaça mas como uma oportunidade para construir um futuro.

A este propósito, a iniciativa Health Parliament Portugal, que decorreu em 2017, é um contributo para este debate. Divulgou recentemente 58 recomendações para a saúde em Portugal (healthparliament.pt) que respondem a necessidades de atualização da lei ou a soluções para melhor cumprir os seus desígnios. Desde logo apostando na inovação, através de partilha de dados de saúde dos portugueses que permita mais eficiência, mais conhecimento e melhores resultados para a saúde e para a ciência, com integral respeito pelos direitos fundamentais; na saúde mental, recomendando um consórcio para o financiamento, ação e avaliação de resultados; no acesso, através de indicadores mesuráveis de barreiras aos cuidados de saúde para avaliar resultados e reforçar a equidade, só para enumerar alguns. É um contributo importante, como outros tantos que devem ter espaço para emergir.

Esta discussão aberta tem de lançar com fidelidade criativa a construção de tempos novos para cumprir as expectativas dos portugueses quanto à saúde e bem-estar de cada um e à saúde pública da comunidade, de forma sustentável. É isso que se espera da política. Colocar a revisão do que orientará a saúde dos portugueses na linha redutora “política é medição de forças”, como já foi avançado em recente entrevista, é jogar com a vida das pessoas.

Recomendar o futuro da saúde é trabalhar a oportunidade de vida de cada um. O SNS tem contribuído para vivermos mais e, na generalidade, melhor. Mas ter um passado não é o mesmo que ter uma história. O que resultar deste debate ficará na história ou no passado. Devemos ser exigentes quando formos chamados a decidir.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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