Montenegro, com os olhos marejados de monte

Na matemática de um mapa, Montenegro é metade do Alentejo, mas um dominó de montanhas e fiordes multiplica-lhe a superfície. O mesmo acontece à identidade. No primeiro Outono na NATO, o Adriático ainda é dos russos, o café é otomano e as sopas eslavas.

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Podgorica, 17h30. O dia já está perdido. A agência de aluguer de automóveis era “a 200 metros”, a estação de autocarros “a 200 metros”, o “responsável” vinha dali a 30 minutos. Mas tudo precisa de ser duplicado ou triplicado no Montenegro. Aguardamos Markus, indefinidamente, depois de uma longa caminhada numa cidade sem referências. A zona mais antiga da capital é Dra, mas, fora a torre do relógio e a mesquita, as casas são dos anos 1980. O mais antigo, mesmo, são as romãzeiras e as pessoas, chupadas pelos cigarros e pelas noites de rakija. Markus aproxima-se, com cara de poucos amigos. Cigarro na boca, olheiras pesadas e gel no cabelo, pergunta ao taxista que faz de tradutor para a Fugas: “Precisam de um carro, é?” “Sim, mas não têm cartão de crédito”, explica o montenegrino. “Já ninguém vive sem um cartão de crédito”, retorque o agente, de dedo em riste. “Mas não vamos estar com merdas. Querem um carro, levam um carro.”

O mais barato, com menos cavalos e “com umas pintas aqui e ali”, como anota Markus no contrato com zero precisão sobre os danos do automóvel, vai seguir de Podgorica até ao lago Skadar num instante. “Querem ir para o lago? Não há lá nada. Os turistas gostam é das montanhas”, refuta, entre os bafos no seu Lovcen Lux (a marca de cigarros tem nome de parque natural) e o olhar cerrado, qual versão balcânica de Don Juan. É mentira. Todos suspiram pelo lago Skadar; acontece que Markus não é desses.

Foi no Montenegro que se filmou um dos últimos 007, Casino Royale. Este pedaço dos Balcãs tem décor para isso: “Don Juans”, histórias de máfia, sexy ladys, bebida e tabaco baratos e paisagens de luxo. É um país de precipícios, em que a queda é constante no azul, seja o do mar sem ondas, o do rio Tara que irrompe pelos fiordes do Norte ou o do maior lago balcânico em dias de céu limpo.

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Mas, mesmo que por vezes custe a acreditar, aqui nada é cinema. Os cigarros, por exemplo, não são encenação. Segundo a Organização Mundial de Saúde, Montenegro é o país em que mais se fuma no mundo. É esta a nuvem, num dia de 28°C, que vemos no ar, ao cruzar o rio Moraca. Se acrescentarmos aos números o Dossier Smoke, uma investigação apresentada há poucos meses por um grupo de jornalistas dos Balcãs, o retrato deste país até há muito pouco tempo aliado dos russos (neste Verão entraram na NATO e são candidatos a integrar a União Europeia desde 2010) ganha outro corpo, no qual entra o contrabando de cigarros, envolvendo nomes do poder. E um poder perene como montanhas. Milo Djukanovic ocupou os cargos de primeiro-ministro e de presidente durante mais de duas décadas. Foi substituído, há um ano, por Dusko Markovic, seu “aliado” de longa data.

O sopro da identidade

Com toda esta trama, Markus já é, na nossa cabeça, um agente secreto pronto a enganar-nos no negócio do aluguer. “Este Peugeot há-de sair-nos caro”, pensamos. Mas isto já é “cinema” e o importante é seguir viagem. Antes mesmo de partir para Skadar, compramos tabaco num quiosque e assentamos as pernas num café da rua Hercegovacka, de mapa na mão. Nuvens de fumo. No Promaja, todos sublinham que, se o objectivo é conhecer Montenegro, Podgorica é uma perda de tempo. “Não há muito para ver”, avisam.

Mas é importante vir até aqui para perceber como se arquitecta o país que é há onze anos independente, depois de três anos em “comunhão de bens” com a vizinha Sérvia. Isto após a desintegração da Jugoslávia e a Guerra do Kosovo e depois, também, de uma primeira independência longínqua, entre 1878 e 1918, na sequência de séculos sob o domínio otomano. “Mesmo sendo um grupo tão pequeno [menos de 700 mil habitantes] numa região tão problemática que já foi dominada por grandes impérios, os montenegrinos sempre lutaram ferozmente pela independência, mas, ao mesmo tempo, tinham o sonho de serem livres num lugar maior, como era a Jugoslávia”, acredita Boro Milovic, fundador do projecto Montenegrina, ligado à divulgação da cultura e património nacionais.

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Com vizinhos como a Sérvia ou a Croácia, inquietos com a ideia de poderem impor os seus valores, a tarefa de manter uma identidade (em grande parte alicerçada no cristianismo ortodoxo, dominante no país, como mostram os mosteiros semeados pelas montanhas) nem sempre foi fácil. “Esperemos que isto deixe de ser ‘assunto’ numa Europa unida”, afirma Boro, que hoje trabalha em Bruxelas como consultor para a União Europeia. Mas a Europa traz também o sonho de uma economia aberta que, neste momento, se vinca num entusiasmo precipitado. Há hotéis inacabados por todo o país, obras embargadas e uma rádio que praticamente não passa música nacional (ao contrário do que acontece nas vizinhas Sérvia e Bósnia e Herzegovina).

Mas estávamos nas nuvens de fumo do Promaja, quando Jelena avançou sobre a mesa. Tem os olhos grandes, contornados pelo lápis negro, cabelos louros sobre os ombros. Na nossa cabeça, é uma actriz de cinema, nascida no azul da costa. Sim, Jelena, se Bar é bonita, é para Bar que vamos. Skadar fica para depois. Menos turística do que as vizinhas Budva e Kotor, mas com o mesmo mar e com os montes Vrsuta e Rumija a subir até à cidade velha. “É verdade que Kotor tem uma baía incrível, mas Bar é mais jovem, mais calma e as águas são mais limpas”, sintetiza a anfitriã.

No caminho montanhoso, tudo fala. “Compre aqui a casa dos seus sonhos por 55 mil euros”; “Duplex de luxo com vista para o mar”. Paramos para um mergulho em Sveti Stefan, o ilhéu transformado em península e num resort de cinco estrelas, outrora palco dos biquínis e charutos de Elizabeth Taylor, Sophia Loren ou Orson Welles. A par da publicidade, abundam os apartmani (apartamentos para arrendar) e os carros alugados. O turismo já representa mais de 25% do Produto Interno Bruto. Felizmente, em Outubro, nós e um casal na outra ponta da praia somos o PIB da época baixa.

Pé no mar, teatro na montanha

O primeiro jogo em Bar serve para perceber se “a praia de calhau”, como é carinhosamente apelidada pelos adeptos da areia fina, traz vantagens para o corpo. “Mas é claro que sim”, faz ver Enrico, viajante italiano concentrado em conhecer a costa. “As pedras não se agarram à pele nem chateiam com o vento.” Abrem porta, também, a dois passatempos: o de atirar as peças certas ao mar, na esperança de conseguir mais do que dois saltos na água; e o de ver como cada um se safa, com mais ou menos “uis”, no caminho até à água morna.

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Chegados a ela, é altura de fechar os olhos e de esperar pela onda. Não vem. Podemos esperar deitados. A única agitação da tarde vem de um russo atlético na casa dos 50 que passa afogueado a nadar ao estilo mariposa. Em terra, pelo contrário, tudo é Itália (a semelhança entre Bar e Bari não é por acaso; a ligação faz-se de ferry numa viagem de cerca de oito horas entre as duas cidades), desde a loja Bambino ao restaurante Mamma Mia, passando pelas pizzas e pelos gelados artesanais.

É preciso subir até à cidade antiga (Stari Bar) para sentir Montenegro de novo na pele. Fica na colina de Londša, recebe-nos com menus vegetarianos (no país da carne, é de assinalar) e conduz-nos às ruínas amuralhadas e ao aqueduto que foi cortado a meio no terramoto de 1979. Para visitar a cidadela, onde se guardam as tumbas, os relógios e as capelas, paga-se três euros. O dinheiro reverte a favor de uma associação cultural que tenta fazer viver a identidade montenegrina em concertos, peças de teatro e exposições.

Mas o ponto forte da cultura clássica é Kotor (Cátaro, em português), a cidade medieval que dorme às portas de uma baía infinita. São 107,3 km junto ao mar, com o massivo de Orjen de um lado e o de Lovcen do outro, e uma vista colossal, interrompida pela chegada lenta dos navios que deixam a água engordurar-se de gasóleo e transformam os pescadores em formigas (a UNESCO já ameaçou retirar o título de Património Mundial, atribuído há 38 anos, devido à falta de protecção do ambiente). “Eta krassiva?” (é bonito?), mete conversa uma russa que fuma cigarros numa espreguiçadeira. Mas não é apenas bonito. É um pedaço de outro mundo, leve à vista, que se tem medo de perder.

Paolo Magelli parece sofrer de uma preocupação semelhante. Encontramo-lo na estante de um hotel, esculpido em palavras num livro sobre o Kotor Art Festival, que acontece desde 2002. “A liberdade de sonharmos tem de ser protegida. Falo daqueles que sabem que os teatros que lideram, as orquestras que conduzem, os estúdios que ocupam, as salas de aula em que ensinam, as secretárias em que se confessam se tornam lugares em que a urgência política representa a linha de resistência de um mundo que quer apagar a sua própria identidade em nome de um falso funcionalismo e da austeridade”, escreveu o director do festival que já esteve para desaparecer várias vezes mas que teima em manter-se de pé.

O Kotor Art nasceu, na verdade, do sonho de um padre ortodoxo (nos anos 1980, durante o período jugoslavo) que defendia que a arte seria a única forma de não nos esquecermos que somos humanos. “Ele percebeu que Kotor precisava urgente e rapidamente de ser defendida da trivialidade”, explica Magelli.

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O destino não é perfeito

Ao quarto dia no Montenegro, estamos fartos de tanta beleza. E ainda faltam, no tempo que resta e no que o mapa trará, Rijeka Crnojevica, uma aldeia cujo rio faz um arco entre a floresta, e Cetinje, a antiga capital real. No quadro selvagem, tudo é perfeito no Montenegro: a estrada que perfura os fiordes, o rio Tara azul como um topázio, as vinhas, as montanhas feitas num terraço gigante sobre o Adriático, os que passam as tardes a soprar fumo nas kafanas (os cafés locais), as romãs, as mariscadas e os presuntos, a solidão dos mosteiros, as cabras montesas. O que fazer para que isto se torne real? Paramos na esplanada do Subdina, em noite de lua cheia e vista para o mar, contra a nossa vontade. O dono, vestido de empregado de mesa do Titanic, chega com um sorriso moreno e afugenta com o pé, discretamente, um coelho cinzento que anda a passear debaixo das mesas. Subdina quer dizer “destino”, traduzimos, pelo que é hora de sacar do mapa.

Em Rijeka Crnojevica conheceríamos Jacques, o francês que anda à boleia a viajar pelos Balcãs de tenda às costas (Jelena havia avisado que, aqui, pode-se acampar em qualquer lugar). Comeríamos uma truta deliciosa em frente à ponte medieval que liga à floresta. Faríamos mais um postal no miradouro voltado para a sombra de montanhas encarriladas no horizonte. Em Cetinje, haveríamos de ser delicadamente expulsos de uma kafana por pedir um expresso em vez de um café turco e conheceríamos Marja, a mulher que nunca saiu do Montenegro por não considerar o país pequeno. A 10km dali, em Lovcen, passaríamos a manhã atrás de vacas malhadas sobre a primeira neve do ano, que durante a noite derrubou árvores e caiu entre trovões.

No Subdina, era mesmo só uma limonada, mas já vamos em sopas de borrego, pão cozido no forno a lenha, paté de marisco, crepes recheados de compota de cereja e morangos, depois de uma semana de burek (o folhado de carne, queijo ou espinafres que resolve pelo menos 10 horas de fome). Uma parafernália de açúcar e gordura, tal como manda o estômago do bom montenegrino. Só uma boa caminhada resolve isto. E, agora sim, sem o sol de Verão nem as luzes dos casinos, o monte é finalmente negro.

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Alojamento
Dormir como um montenegrino

Cheirava a bolo no forno quando esticamos as pernas na cama do hostel, pelo que, quando o senhor Dalibor bateu à porta a meio da tarde, esperávamos secretamente que na palma da mão trouxesse uma especialidade caseira. Como Alice, batemos os sapatos três vezes e lá estava ele, de bebé ao colo, e duas fatias de bolo de chocolate. “Foi a minha mulher que fez”, exclamou Dalibor, referindo-se ao bolo, imaginamos. No dia seguinte, o dono deste hostel de Bar haveria de nos oferecer mandarinas e romãs do quintal, onde uma grande ramada de kiwis torna os dias frescos.

Desde que o país começou a abrir-se ao turismo – mais acentuadamente nos últimos dez anos (o euro foi introduzido aqui em 2002, embora não de forma oficial) – o negócio do arrendamento de casas e quartos proliferou, por vezes de forma desordenada. O mesmo assunto que hoje enche os cafés de Lisboa e do Porto, sobre os valores no mercado imobiliário, é também uma das grandes preocupações dos montenegrinos, principalmente nas zonas costeiras, como Bar. Muitos, por isso, são obrigados a “esquivar-se” nas montanhas.

Por outro lado, “o Norte sempre foi menos desenvolvido do que a parte sul do Montenegro, então tem havido alguma movimentação da população, para a capital, Podgorica, e para a costa, à procura de oportunidades e de uma vida melhor”, acrescentou Boro Milovic, fundador do portal Montenegrina, numa entrevista à Fugas posterior à viagem. Mas o turismo também está a crescer no Norte do país, com o aparecimento de eco-aldeias, hotéis e empreendimentos ligados a desportos radicais, como o rafting, especialmente perto de Zabjak e Kolasin.

Para os proprietários dos hostels Dalibor, Feels Like Home (em Podgorica) ou da Vila Popovic (em Cetinje), partilhar a vida com turistas não é problema, até porque se consegue um rendimento extra (o salário médio no Montenegro é de 613 euros, mas já foi de 266, em 2004, quando o país estava anexado à Sérvia). Para os turistas é que, dependendo da perspectiva, pode não ser engraçado acordar às 8h30 com músicas solenes do canal de desenhos animados ou ter de calçar pantufas para circular pela casa.

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