Quem vai para o mar prepara-se em terra

A frase mantém-se actual e a Volvo Ocean Race é um dos exemplos paradigmáticos de uma das regras básicas para a sobrevivência no alto mar.

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A tripulação da Dongfeng Reuters/PEDRO NUNES

Dois meses e cinco dias depois de partirem de Alicante, no Sul de Espanha, os sete veleiros que competem na Volvo Ocean Race (VOR) 2017-18 voltaram a atracar. Para trás, naquele que será o percurso mais longo de sempre – e previsivelmente mais duro – da prestigiada prova de circum-navegação por equipas, ficaram 39 dias no mar e 15.865 milhas náuticas percorridas (quase 30 mil quilómetros). Após paragens em Lisboa e na Cidade do Cabo, os sete Volvo Ocean 65 atravessaram o inóspito Índico Sul e recarregam agora baterias em Melbourne, na Austrália, de onde vão zarpar no segundo dia de 2018, rumo a Hong Kong. Porque uma competição como a VOR não pára quando as tripulações estão em terra, o PÚBLICO visitou a base da Dongfeng no stop-over da Cidade do Cabo e procurou perceber como se prepara um dos candidatos à vitória quando o barco encosta às boxes.

Quase 44 anos depois de o Sayulla II, um veleiro Swan 65 comandado pelo mexicano Ramón Carlin, festejar a vitória na primeira edição da Whitbread Round the World Race, a competição que em 2005 foi rebaptizada VOR já não é (apenas) uma corrida de aventureiros com uma grande dose de loucura. Com muitos milhões de euros envolvidos e os melhores velejadores do mundo em competição, a prova é agora preparada ao mais ínfimo pormenor e, para as equipas que ambicionam disputar a vitória, há um requisito sine qua non: ter uma equipa de terra vasta e qualificada.

Com muitos milhões de yuans investidos pela Dongfeng Motor Corporation, uma das maiores construtoras automóveis chinesas, e o savor faire da vela francesa, a Dongfeng Race Team não facilitou na sua segunda participação na competição. Com velejadores de renome no seu elenco, como os franceses Charles Caudrelier, Pascal Bidegorry e Jérémie Beyou, os neozelandeses Daryl Wislang e Stu Bannatyne, e a holandesa Carolijn Brouwer, a Dongfeng apetrechou-se com uma equipa de terra composta por mais de duas dezenas de elementos. Entre eles está o britânico Neil Maclean-Martin, o homem responsável por cuidar do bom estado físico da tripulação. Com um currículo na área da performance física de respeito no judo, modalidade onde trabalhou nos Jogos Olímpicos de 2004, 2008 e 2012, este adepto de ultramaratonas teve a sua primeira experiência na vela com a Team France na America’s Cup realizada este ano, em que os “períodos de exercício físico são mais curtos e intensos”, mas em que, curiosamente, os atletas “consomem por dia cerca de 7500 calorias, o mesmo número que na VOR”.

Com um plano de treino ajustado ao tempo de paragem em cada stop-over, Neil Maclean-Martin começa por revelar, em conversa com o PÚBLICO, que, “após a chegada da tripulação, os primeiros cuidados são com a saúde geral de cada velejador”. “Medimos as variações de peso e de massa muscular. Dessa forma traçamos um perfil geral do estado de saúde. Com base nisso, defino um programa de recuperação para os dois ou três primeiros dias. Todos apresentam sintomas elevados de fadiga pela exigência física da competição e por passarem longos períodos no barco, em espaços pequenos e sem se mexerem muito. Os corpos ficam contraídos”, explica.

Para que “recuperem o ritmo habitual”, o responsável pelo físico da Dongfeng procura reforçar três pilares fundamentais: “Alimentação saudável, bons períodos de sono e fortalecimento muscular.” No treino físico, Neil Maclean-Martin garante que não faz distinção entre homens e mulheres, definindo a preparação de cada atleta “pela posição que ocupa no barco” e pelas “necessidades individuais”. “Quem tem um historial de vela olímpica tem necessidades diferentes de quem sempre fez vela offshore.” Após os 19 dias da segunda etapa entre Lisboa e a Cidade do Cabo, cada velejador da Dongfeng perdeu, em média, quatro quilos, mas Jérémie Beyou chegou à África do Sul sete quilos mais leve. No entanto, a preocupação de Maclean-Martin não se mede ao quilo: “Mais importante do que eventuais perdas ou ganhos de peso é que mantenham os índices de massa muscular. Perder gordura não me preocupa.”

Se a responsabilidade de não faltar músculo à Dongfeng é de Neil Maclean-Martin, Alexis Landais tem nas mãos a sempre complexa parte mental e explica que a sua “principal preocupação é conseguir manter a coesão, solidariedade e motivação da equipa”. “Tenho muitas conversas privadas com cada velejador – há sensibilidades diferentes –, para perceber se está tudo bem com cada um e o que se passou durante as regatas. Avalio o porquê de tomarem as decisões certas ou erradas.”

Apesar de lidar com culturas e nacionalidades muito diferentes, este parisiense garante que “a abordagem é idêntica com chineses, franceses ou neozelandeses”, e deixa uma certeza: “Se perceber que algum velejador não está bem psicologicamente, darei indicação ao Charles [skipper da Dongfeng] para não o incluir na tripulação para a regata seguinte.”

Com Alexis Landais impossibilitado de ajudar a tripulação a ultrapassar os períodos menos positivos animicamente em alto mar – apenas é permitido contacto com o barco via email que é monitorizado pela VOR –, Marie Riou revela ao PÚBLICO o “truque” para levantar o moral da equipa nos dias maus. Com quatro títulos mundiais na classe Nacra 17 no currículo, esta francesa, de 36 anos, é uma das três mulheres que compõem a tripulação da Dongfeng e uma das suas áreas de responsabilidade é fazer a difícil gestão da alimentação nas regatas offshore. Com um pequeno-almoço composto por cereais com leite e dois pacotes de comida liofilizada por dia para cada velejador – os chineses têm direito a um pacote de noodles –, Riou diz que “todas as manhãs” inspecciona “o saco de comida de cada um”, para “perceber quem é que comeu e quem não comeu”. “Se vejo, por exemplo, que o Charles [Caudrelier] se alimentou pouco, alerto-o para a necessidade de comer.” E, quando algo corre mal, é altura de utilizar “o pequeno segredo”: “Temos duas tabletes de chocolate por dia para os dez. Na segunda etapa, quando perdemos o primeiro lugar já perto do final, foi um momento difícil. Foi preciso encontrar algo que nos mantivesse juntos e motivados. Aí, um simples e pequeno chocolate pode ter um papel importante.”

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