Mona Lisa abandonada e trocada

Um estudo recente publicado pelo International Journal of Mental Health and Addiction considerou que há casos de adição nas pessoas que já não conseguem viver sem tirar selfies todos os dias.

Um estudo recente publicado pelo International Journal of Mental Health and Addiction considerou que há casos de adição nas pessoas que já não conseguem viver sem tirar selfies todos os dias; um outro estudo, conduzido pela universidade de Nottingham Trent do Reino Unido e a Thiaggar School of Management da Índia, deu conta do grau de adição que pode conduzir à morte, pelo facto desses dependentes quererem obter selfies a todo o custo - na borda de uma janela, ao pé de um precipício, a atravessar uma rua sem ter em conta os carros…

O estudo dá a conhecer o número de mortes, passando a designar esta perturbação mental como selfitis.

Estes elementos fizeram bater nas portas da memória um episódio ocorrido, em setembro passado, no museu do Louvre, em Paris, na sala onde está exposta a pintura de Leonardo da Vinci, a célebre Mona Lisa.

Aí aconteceu algo verdadeiramente inesperado ao entrar na galeria onde se poderia, com a maior perspicácia possível, interrogar o enigma que o olhar de Mona Lisa encerra. A surpresa foi deparar com a Mona Lisa invadida por uma trupe de gente de todo o mundo com extensões de telemóvel na mão, virando as costas à pintura, disparando flashes. Um susto. Loucos que chegavam e queriam, a todo o custo, apanhar o lugar que lhes permitisse sacar a selfie onde a carantonha do dono do telemóvel aparecesse à frente do misterioso sorriso de Mona Lisa. O importante não era a pintura, mas sim as caras de sorriso basbaque do ato predatório. Os predadores não se dignaram olhar para a pintura. Eram trinta, quarenta, cinquenta? O suficiente para impedir quem quisesse quedar-se em silêncio diante daquele rosto e daquele sorriso.

Foto

Entusiasmados, voltavam à repetição do tiro que permitia registar aquele momento único e conferia à Mona Lisa a possibilidade de aparecer ao lado daquela trupe e inundar o facebook e outras redes. A sorte dela, a desconhecida.

Já não sei se vi ou pensei que vi a tristeza estampada no rosto de Mona Lisa. São coisas que não são fáceis de ver. Aqueles olhos que são não só doces, têm tudo o que o pintor viu nos seres humanos.

Já não sei se vi ou se pensei que vi uma infinita piedade por aquela espécie de humanos que têm olhos e não vêm, apenas olham para as faíscas que emanam das tecnologias que os apanham pelos mesmos olhos e os conduzem como cegos pelos barrancos do egocentrismo e os fazem dar saltos ao pé da pintura de Leonardo para afirmarem aos familiares e aos amigos que afinal existem.

Não sei se vi ou se pensei que vi Leonardo por detrás da densidade daquele olhar a perguntar:

- Foi para isto que se fez o Renascimento? Quem são estes seres que pulam e olham e não vêm? Quem são estes jovens, estas mulheres, estes loucos de encantamento por si próprios? Eu pintei para que pudessem ver a beleza, o enigma, a esperança, a ironia, a paz, o sonho que um rosto e um olhar podem conter…Quem são estes humanoides que precisam de extensões para se projetarem à frente da minha Mona Lisa?

Uma corda impedia as trupes de se aproximarem mais da pintura. Revoadas delas apareciam e desapareciam.

Sozinha, absolutamente entregue a si própria, a pintura de Leonardo já não tinha quem a olhasse e a admirasse.

Naquela sala do Louvre o “novo” homem que cortou com o homem que vem dos fundos do tempo afirmava toda a sua incultura e toda a sua escravidão às tecnologias.

O que vale é que ao sair do Louvre uma chuva miudinha apaziguava a alma. No seu lugar de sempre Mona Lisa abandonada e trocada.

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