O eurodeputado e a bela mortandade adormecida

Os partidos nunca assumiram que o combate à sinistralidade rodoviária exige um pacto de regime.

Tivemos no dia 12 de Dezembro a agradável surpresa de ler um artigo de um eurodeputado português dedicado à mortandade nas estradas portuguesas. O eurodeputado Paulo Rangel escreveu-o na sua coluna regular no jornal PÚBLICO. O título é pungente: “2017 e mortalidade rodoviária: o ano da grande regressão.”

Como fundadores e dirigentes da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (ACA-M), não podemos senão congratularmos o facto de, na torrente mediática, um político — ainda para mais alguém cuja voz nos representa no Parlamento Europeu — dedicar alguns minutos da sua atenção à sangria diária que é a sinistralidade nas estradas portuguesas.

Não nos recordamos de grandes contributos públicos de Paulo Rangel sobre a matéria. Na verdade, não nos recordamos de muitos contributos públicos sobre a vida e morte nas estradas por parte de todos aqueles que reclamam ter vocação para assumir responsabilidades públicas em prol daqueles princípios fundamentais tão acarinhados pela nossa Constituição — o direito à vida, à liberdade e à segurança. Mas por uma vez, finalmente, um político, e para mais um eurodeputado, afirmou clara e publicamente que, à semelhança dos incêndios florestais, “o Estado falhou e volta a falhar no domínio da segurança das pessoas (e dos bens)”. Esta denúncia é necessária e bem-vinda, apenas manchada pela vaga suspeita de que este interesse pela sinistralidade rodoviária — um problema real português desde há muitas décadas — ter eventualmente mais a ver com a fugacidade da luta política e não com um real empenho nesta nobre e essencial causa.

É que o eurodeputado fala de um passado dourado que a ACA-M desconhece. A sua sugestão de que o número de vítimas nas estradas desceu, nos últimos dez anos, para níveis considerados “aceitáveis”, não é aceitável. Ou por outra, só seria aceitável para quem se interessasse apenas por números, não por pessoas. A mortalidade nas estradas não é um penacho que se utilize para autopromoção quando o nosso partido é governo, e como ariete quando o nosso partido está na oposição. É, para quem sente na carne os malefícios da sinistralidade nas estradas portuguesas, um assunto muito sério. É um assunto muito sério porque evidencia que o Estado falhou e falha na protecção da vida e da segurança dos cidadãos, e que as sucessivas magistraturas se têm contentado, nos últimos 17 anos, a elaborar e a aprovar planos de segurança rodoviária que nunca são concretizados, avaliados, orçamentados e prosseguidos. Não houve até hoje um único plano que tenha sobrevivido à demissão de um ministro ou de um governo. Nunca houve um tempo dourado que os órgãos do Estado português possam reclamar como sendo o de intervenção bem-sucedida em prol da vida e da segurança dos cidadãos nas estradas.

Temos como claro que o número de mortos e feridos não diminui, apenas aumenta e acumula de ano para ano. Quando os termos de argumentação se focam na “redução anual” do número de mortos e feridos face “ao ano anterior”, o caldo analítico fica logo estragado. Trata-se de um silogismo falacioso que, até este ano — o “ano da grande reversão” —, era avançado para convencer quem não quer pensar nem agir:

1. O Estado elabora planos para combater a sinistralidade rodoviária em Portugal.

2. O número de mortos e feridos nas estradas tem vindo a diminuir

3. Logo, os planos do Estado funcionam.

Não há mais mortes e feridos na estrada por causa do actual Governo-“geringonça”, ao contrário do que Paulo Rangel sugere. Não há mais desinvestimento na segurança dos cidadãos hoje do que havia antes. Como nos incêndios florestais, onde também a irresponsabilidade individual concorre com a irresponsabilidade pública, o Estado falhou e falha porque nunca assumiu verdadeiramente a responsabilidade de proteger a vida dos cidadãos e a segurança rodoviária é apenas tratada como matéria sazonalmente incómoda em termos noticiosos que insiste em nos deixar ficar mal no retrato europeu.

Os partidos representados na Assembleia da República, e por maior razão aqueles que têm tido responsabilidades governativas desde há muitos anos, nunca assumiram que o combate à sinistralidade rodoviária exige um pacto de regime, e um pacto de responsabilidade e transparência entre o Estado e os cidadãos. Nenhum plano saído de um obscuro instituto dependente de uma Secretaria de Estado e aprovado por um governo através do mecanismo do decreto-lei, ainda para mais não suportado por um orçamento correspondente, poderá sobreviver e vingar. Devolva-se à Assembleia da República a dignidade de legislar e fazer cumprir a Constituição. E aproximem-se os planos e as acções do executivo governamental dos cidadãos e do poder local: que uns e outros sintam que participam na resolução dos problemas em vez de serem tratados como passivos recipientes da vazia retórica provinda da Administração Interna.

Os meios de comunicação andam desde há alguns dias fascinados com o pequeno escândalo da eventual má gestão da associação Raríssimas, apoiada pelo Estado. Acontece que as vítimas da estrada, para os diferentes poderes (inclusive o quarto), continuam a ser o oposto de raríssimas: banalíssimas. Tão banalíssimas que não há, ainda hoje, passados tantos dourados anos, ministério que considere que entregar um euro de auxílio que seja às vítimas da estrada seja parte da sua responsabilidade social. Se o eurodeputado Paulo Rangel quiser ter mais rigor no que escreve e dedicar, com regularidade, tempo, espaço e voz a esta causa, é bem-vindo e contamos com ele. Caso contrário, agradecemos o seu auxílio mas já demos. Dirigentes da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados

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