O mundo é um filme

Baudelaire, que desprezou a fotografia e viu nela uma técnica capaz de causar danos à arte, soube no entanto apreender a força e a importância das imagens na modernidade de que ele foi um grandioso arauto. É dele esta frase: “Glorificar o culto das imagens (a minha grande, a minha única, a minha primitiva paixão)”. No seu tempo, a metrópole moderna começava a tornar-se um ecrã, por onde passavam imagens em catadupa. Não tardou muito para que alguns espíritos lúcidos, mas pouco temerários, do início do século XX começassem a recear que a proliferação das imagens tivesse um efeito de esterilização da cultura. Mais perto de nós, o fenómeno das imagens (da sua produção, difusão e efeito) tornou-se tão poderoso que deu origem a um campo disciplinar ao qual foi dado o nome de “visual studies”. Nesse âmbito, surgiu já o conceito de “acto icónico” ou “acto da imagem” que corresponde à ideia de que as imagens fazem coisas, têm uma dimensão performativa. Recentemente, um filósofo e musicólogo francês chamado Peter Szendy veio contribuir para se pensar esta disciplina dos “visual studies” (ainda que indirectamente e situando-se num lugar distante desse campo de estudos, que é aliás bastante vasto), com um conceito bastante produtivo e, por isso, muito digno de atenção: o conceito de “iconomia”. Trata-se de um neologismo formado pela fusão de duas palavras existentes na língua (aquilo a que os franceses chamam mot-valise). Essas duas palavras são “ícone” e “economia”. O ensaio de iconomia de Peter Szendy tem como título Le supermarché du visible (o supermercado do visível). Como é fácil perceber, trata-se neste livro da relação entre a imagem e o dinheiro e do modo como ambos reclamam as noções de dívida e de crédito A imagem como moeda viva e dotada de um valor fiduciário é analisada como aquilo que circula em todos os momentos e todos os espaços do nosso mundo contemporâneo, suscitando uma nova concepção e uma nova economia do olhar. Em suma: aquilo a que Szendi chama “mercadorização da visibilidade”, própria do nosso tempo. A análise que Szendy faz das afinidades entre a imagem e o dinheiro leva-o a apreender uma analogia entre o mundo contemporâneo e o shopping center. Se o mundo é um shopping center total, isso significa que não há nada que seja exterior ao mercado, não há um hors-marché . Este centro comercial total tem uma lógica fílmica, é feito de travellings, montagens, sequências. Temos então uma “iconomia fílmica” que estende as suas regras a todo o “supermercado do visível”. Ficamos assim a saber que nos movemos num mundo fílmico, configurado como um cenário. E Peter Szendy analisa então “as maneiras como a visão pode ser mobilizada, canalizada, empurrada em carris que a conduzem por travellings de uma circulação económica universal”.

A ideia de uma visão completamente orientada por determinações exteriores à vontade e à acção consciente do indivíduo é já uma outra fase, um novo patamar, daquilo a que se chamou “ocularcentrismo”, isto é, o privilégio concedido à visão na história da cultura ocidental. Neste supermercado do visível saturado de imagens, em que o mundo se tornou cinema (retirando assim ao cinema o seu conteúdo fundamental e subtraindo-nos à experiência mágica da sala de cinema), reina o poder das trocas que têm como única mediada a abstracção do dinheiro. Este é o grau último do fetichismo da mercadoria, aquele em que esta é já só imagem e todo o desejo que ela suscita é um desejo iconómico. Mas a questão é também esta: quando o mundo é fílmico (um arqui-cinema), que lugar há ainda para o cinema? Como pode ser adiado o seu fim?

 

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