Que aconteceu a António Costa?

António Costa precisa de se reencontrar para continuar a ser aquilo que em tempos disse recusar: primeiro-ministro e secretário-geral do PS.

Durante a minha breve (e, diga-se, pouco feliz) passagem pelo Parlamento como deputado do PS, na época dos governos de Durão Barroso e Santana Lopes, aprendi a admirar as qualidades políticas de António Costa, líder da bancada socialista quase até ao fim da legislatura. Era um excelente coordenador dos trabalhos, tinha um espírito aberto e ousado, além de ter sabido navegar com notável discernimento numa conjuntura particularmente turbulenta, motivada em larga medida pelo “caso Casa Pia” que certas forças hostis ao PS tentaram aproveitar de forma ignóbil.

Quando Ferro Rodrigues renunciou à liderança do partido por discordar da decisão de Jorge Sampaio de dar posse a Santana Lopes como sucessor de Barroso — a caminho da Comissão Europeia —, insisti junto de Costa para se candidatar a secretário-geral do PS. Não só porque ele era para mim, manifestamente, o melhor candidato, como para prevenir que o lugar fosse ocupado por alguém que conspirava intensamente nos bastidores e cuja personalidade arrogante, autoritária e de uma ambição desmedida me parecia representar um perigo para o partido (e eu estava ainda muito longe de adivinhar o que viria depois): José Sócrates. Mas Costa respondeu-me de forma peremptória: nunca seria líder do PS nem primeiro-ministro.

Esta história que julgo já ter contado anteriormente está na origem de um mistério ainda por esclarecer: quem é afinal António Costa e o que lhe aconteceu? O que se sabe é que Costa é hoje precisamente aquilo que me disse que nunca seria, depois de ter aceite, entretanto, ser ministro de Sócrates. E o que não se sabe é o que teria acontecido se Costa tivesse sucedido a Ferro Rodrigues e o PS e o país tivessem sido poupados à experiência funesta de Sócrates (com todas as consequências que se conhecem).

Dito isto, António Costa protagonizou a mais inovadora fórmula de governo da democracia portuguesa e conseguiu durante quase dois anos — o aniversário ocorre agora — devolver ao país um sentimento de esperança e confiança que se perdera desde a bancarrota iniciada durante o Governo Sócrates e a austeridade punitiva que se seguiu com o Governo Passos-Portas e a troika. Mas eis que, subitamente, a percepção dessa esperança e dessa confiança ameaça desvanecer-se e que Costa e o seu Governo, aparentemente incólumes às profecias maléficas, parecem agora correr atrás de sucessivas calamidades para as quais não estavam preparados, tropeçar em situações mais ou menos previsíveis ou tomar iniciativas sem norte ou sustentação.

Das reacções iniciais aos incêndios ou às reivindicações do funcionalismo público, passando pelos casos de degradação dos serviços do Estado ou até da improvisada, infantil e absurda transferência do Infarmed para o Porto como consolação clientelista pela perda da Agência Europeia do Medicamento — uma caricatura grotesca do que deve ser uma verdadeira política de descentralização —, o Governo parece ter-se tornado uma manta de retalhos em que falta a visão de conjunto e a pedagogia da acção. Se a comunicação falha repetidamente, é porque falha aquilo que há para comunicar.

Que aconteceu a António Costa? Como é possível que um político que conheci como um exemplo de coordenador esclarecido se tenha tornado tão vulnerável aos acidentes de percurso e pareça ter perdido a bússola da acção política? Sim, precisamos de um novo ciclo governativo e é urgente repensar o país de alto a baixo, sobretudo quando somos assaltados por tantas calamidades que expõem as nossas debilidades estruturais (pois essas estavam lá, antes de as calamidades acontecerem). António Costa precisa de se reencontrar consigo mesmo para continuar a ser aquilo que em tempos disse recusar: primeiro-ministro e secretário-geral do PS.

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