Onde crescemos e vivemos ainda determina o nosso estatuto económico e social

A importância do local onde se nasce, cresce e vive na situação socioeconómica futura (educação, emprego, rendimento, etc.) é relevante para as decisões de políticas públicas.

Mesmo numa altura em que a distância física parece ultrapassada pelas novas tecnologias de comunicação e o avanço nas várias formas de transporte, o local onde crescemos e vivemos continua a ser um forte determinante do nosso lugar na pirâmide económica e social.

A importância do local onde se nasce, cresce e vive na situação socioeconómica futura (educação, emprego, rendimento, etc.) de um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos – e quantificar essa importância – é relevante do ponto de vista académico e, especialmente, para as decisões de políticas públicas, idealmente fundamentadas em evidência científica. Para além de assim se obter maior transparência no processo de decisão – e quanto às consequências previsíveis da mesma –, pretende-se também que sejam tomadas decisões melhores, mais eficazes quanto ao objetivo que prosseguem.

Esta ideia de que a “boa tomada de decisão” por um dado governo e suas organizações deve ser apoiada pela melhor evidência empírica disponível tem sido implementada em alguns países, de que é exemplo o Reino Unido, através da criação de “What Works Centres” para as principais áreas de intervenção pública: saúde, assistência social, educação, crescimento económico local, bem-estar, segurança e crime, etc. A criação destes centros requer não só vontade política, mas também capacidade de produção de estudos empíricos adequados.

Esta última não depende apenas da quantidade e qualidade do corpo científico do país. Depende também, e em grande parte, da qualidade dos dados estatísticos existentes e – crucialmente – disponibilizados pela administração pública. Em Portugal, a falta de acesso a este tipo de dados impossibilita, por exemplo, a quantificação da diferença entre o nível de educação e rendimento futuros de duas crianças causada por terem crescido em locais diferentes, não obstante partilharem contextos familiares idênticos.

Experiências reais, em que se distribuiriam certos grupos de indivíduos ou famílias aleatoriamente pelas várias regiões do país, são impossíveis – tanto por questões éticas, como de custo de implementação. Assim, a melhor alternativa de que dispomos na identificação de uma relação causa-efeito, por oposição a simples correlações, é recorrer a microdados longitudinais com elevada resolução geográfica. Isto é, dados que permitam “observar” o mesmo indivíduo no espaço geográfico e ao longo do tempo, o que por sua vez possibilitaria relacionar resultados socioeconómicos com diferentes fatores individuais, familiares e geográficos que podem influenciar esses mesmos resultados.

Portugal tem várias bases de microdados longitudinais que podem ser acedidas para fins de investigação científica segundo protocolos estabelecidos devidamente para este efeito. No contexto da análise das disparidades regionais na situação económica dos indivíduos e famílias, importa mencionar o Painel Europeu dos Agregados Familiares, o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, e os Quadros de Pessoal. No entanto, o acesso a estes microdados não inclui informação geográfica suficientemente detalhada sobre o local de residência e/ou trabalho. Consequentemente, estudos com a natureza temporal e geográfica necessária à identificação do impacto dos locais de residência ou trabalho na situação económica e social dos indivíduos são ainda raros em Portugal.

Se tomarmos como exemplo os estudos de microdados longitudinais sobre desigualdades salariais, a maioria destes considera apenas as cinco regiões NUTS2 de Portugal continental, havendo um ou outro que considerou as regiões NUTS3 ou os distritos.* Os resultados indicam que a desigualdade salarial entre regiões é notável e persiste mesmo depois de se considerarem as diferenças nas características dos trabalhadores (educação, experiência, idade, ocupação) e as diferenças regionais no nível de educação e na estrutura económica e ocupacional.

Em suma, a evidência existente indica que trabalhadores com características idênticas recebem salários mais elevados na região de Lisboa que noutras regiões, sendo que a magnitude deste “prémio” varia conforme o estudo. No entanto, a escala geográfica destes estudos é muito grande e não permite compreender as dinâmicas mais locais dentro de cada macro-região. Bastará lembrar que as regiões NUTS2 Norte, Centro e Alentejo vão do interior mais desertificado até ao litoral mais urbanizado (ex. Leiria-Castelo Branco), escondendo assim uma forte heterogeneidade interna que sabemos ter um impacto importante na situação económica e social dos seus habitantes.

Para se compreender estas dinâmicas, é preciso usar uma escala geográfica muito mais fina, especialmente porque a mobilidade dos trabalhadores é cada vez maior. A boa notícia é que esta informação geográfica mais detalhada existe em Portugal. A má é que não é disponibilizada, o que é justificado com motivos de confidencialidade estatística. Este argumento, embora importante, não convence. Existem várias maneiras de anonimizar dados individuais e é possível criar regras de acesso e manipulação de dados que dificultem a violação, intencional ou não, da confidencialidade estatística.

Em conclusão, regressemos ao Reino Unido, como exemplo de um país onde o acesso a microdados é muito alargado, não sendo impossível aceder a informação até ao nível do código postal. Evidentemente, o acesso é concedido segundo uma hierarquia de regras e medidas que variam em crescendo com o risco de revelação de informação confidencial. Daí resulta um campo de possibilidades muito mais vasto quando às análises que se podem fazer, o que ajuda a perceber não só a abundância de artigos científicos de grande impacto produzidos nesse país, mas talvez também a criação bem-sucedida dos “What Works Centres”.

*Estudos que fazem uso de microdados longitudinais para quantificar a magnitude das desigualdades salariais entre regiões em Portugal. 

Pereira, J. e Galego, A. (2015) Intra-regional wage inequality in Portugal. Spatial Economic Analysis, 10(1), 79-101.

Pereira, J. e Galego, A. (2014) Inter-regional wage differentials in Portugal: an analysis across the wage distribution. Regional Studies, 48 (9), p. 1529-1546.

Galego, A. e Pereira, J. (2014) Decomposition of regional wage differences along the wage distribution in Portugal: the importance of covariates. Environment and Planning A, Vol. 46 (10), pp. 2514-2532.

Pereira, J. e Galego, A. (2011) Regional wage differentials in Portugal: Static and dynamic approaches. Papers in Regional Science, Vol. 90 (3), pp. 529-548.

Vieira J., Couto J., Tiago M. (2006) Inter-regional wage dispersion in Portugal. Regional and Sectoral Economic Studies, Vol. 6 (1), pp.85-106. 

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