O fato de treino e as bananas

Não sei onde o leitor foi buscar tal ideia, mas imagino. Esta é parte da história da fotografia que Nelson Évora usou para denunciar o Urban Beach. E a história de como a cegueira do racismo cega mesmo.

Reserve as quartas-feiras para ler a newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.

Quem não concordou com o que escrevi há uma semana chamou-me preguiçosa e leitora de tablóides. É o normal. No meio do ruído, o único comentário que me surpreendeu foi sobre Nelson Évora e o Urban Beach.

“Pois... mas desde quando é que se vai para uma discoteca vestido de fato de treino!!”, escreveu um leitor de Almada. “A situação não foi bem contada Sr. Nelson Évora! Pode não ser politicamente correcto, mas é a verdade.” Perguntei ao leitor de onde vinha a informação. Resposta: “Tenho alguém que lá trabalhou e assistiu.”

Não sei onde o leitor foi buscar tal ideia, mas imagino. O triste episódio do Urban Beach aconteceu a 19 de Abril de 2014, véspera do aniversário de Nelson Évora. O atleta jantou fora com 15 amigos e a seguir foram ao Urban, onde tinham mesas reservadas. “[Quando lá chegámos,] não é que somos surpreendidos pelos responsáveis daquele espaço público. Porquê? ‘Demasiados pretos no grupo!!!’”, contou o atleta no Facebook no dia 28 desse mês.

É preciso nunca ter ido ao Facebook de Évora para não perceber como este post é absolutamente invulgar no seu historial. O seu mural é 99% sobre desporto e é pontuado, aqui e ali, por fotografias das campanhas publicitárias em que representa marcas de luxo. É um espaço incontroverso, sem política, nem tomadas de posição incómodas. Nelson Évora não é um cidadão passivo. Já assumiu publicamente posições de força. Mas não faz isso no Facebook.

“Estarei a exagerar ou foi mesmo racismo?”, pergunta no post de 28 de Abril. Não será lunático dizer que a fotografia que associou à denúncia foi coreografada. Nelson Évora está em pose com um amigo, os dois de fato de treino, cada um com uma banana meio descascada na mão. Claramente, a fotografia contra o Urban responde à própria pergunta de Évora: “Foi mesmo racismo?” O post é um statement político servido com fina ironia. Todos sabemos que dá imenso jeito levar bananas nos bolsos para as discotecas e que as bananas vão bem com whisky.

Entre os “demasiados pretos” que o Urban não deixou entrar, estavam Francis Obikwelu, Naide Gomes, Carla Tavares, Susana Costa e Rasul Dabó, todos atletas de alta competição. Não vamos fazer de conta que não olhamos para quem nos dá medalhas com algum encanto. Seria discriminação classista se Évora, Obikwelu ou Carla Tavares entrassem apenas porque são famosos? Percebo o argumento. A vergonha é maior por serem estes negros e não outros negros quaisquer? A vergonha é a mesma e o racismo é igual. O caso acrescenta apenas uma camada ao Urban: além de racista, é pobre nas artes do marketing.

Melhor do que a forma que Nelson Évora escolheu para denunciar o racismo, só mesmo o jogador Dani Alves do Barcelona, a quem atiraram uma banana num jogo em Villarreal, Espanha, quando se preparava para marcar um canto. Com toda a naturalidade, Dani baixou-se, apanhou a banana e comeu-a.

Em anos, não me lembro de ver nenhuma notícia sobre fãs atirarem amendoins ou bananas contra jogadores de futebol brancos. Mas lembro-me das dezenas de relatos em que isso foi feito contra atletas negros e de origem latina.

Ah, ia-me esquecendo: Dani Alves comeu aquela banana no campo do Villarreal a 28 de Abril de 2014. “Comeu o racismo”, escreveu o Tiago Pimental nesse dia. Exacto: o mesmo dia em que Nelson Évora aparece no Facebook de fato de treino com uma banana na mão, nove dias depois de o seu grupo de amigos ter sido barrado à entrada do Urban, a denunciar a falta de ética da discoteca. Já agora, claro leitor, nesse dia 28 muitos outros atletas fizeram-se fotografar com bananas na mão e foi criada até a campanha #somostodosmacacos. Era solidariedade, imagine-se. E humor (sobre a “descolonização dos currículos”, falamos depois; first things first).

Sugerir correcção
Ler 9 comentários