As anamorfoses de Ana Jotta

Com uma individual a decorrer na galeria Miguel Nabinho, Ana Jotta prepara-se para inaugurar a exposição do Grande Prémio Fundação EDP Arte em Lisboa. Ambas confirmam a vocação totalizante da obra desta artista sem paralelo.

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Ganhou o Grande Prémio Fundação EDP Arte em 2013, o mais importante galardão no nosso país que um artista plástico possa receber. Inaugurou a exposição antológica que corresponde a este prémio, ao mesmo tempo que tem ainda a decorrer, na galeria Miguel Nabinho, que a representa, a sua mais recente individual. Pode dizer-se, por isso, que Ana Jotta tem um ano intensíssimo, tanto mais que recebeu a notícia da concessão do prémio Rosa Schapire, um prémio da Kunsthalle de Hamburgo que salienta “a tenacidade e a independência” do artista que o recebe.
De facto, para quem conhece bem a obra de Ana Jotta, estas duas palavras caracterizam de forma excelente tanto a sua produção como a sua personalidade. Avessa a rótulos, a estilos e a modas, tem desenvolvido um extensíssimo e variado corpo de trabalho sempre surpreendente, sempre diferente, e que, cada vez mais, se identifica com a própria vida da artista. Como tantos antes dela (mas sobretudo todos aqueles que se reclamavam da anarquia dadaísta e da liberdade surrealista), Ana Jotta sempre quis que não houvesse separação entre o que era a sua obra, pública e oferecida ao olhar do mundo, e a sua intimidade.

É conhecida a sua paixão pela recolecção de objectos vários que vão sendo acumulados na sua casa e no atelier, uma casa que já seduziu mais do que um curador, e que foi a matéria-prima (ou o seu conteúdo, o que é mais correcto dizer) de uma grande individual na Culturgest em 2014,  A conclusão da precedente. O título referia-se a uma outra exposição, a antológica de Serralves feita em 2005, chamada Rua Ana Jotta. De certa forma, ambas faziam parte de um continuum processual que pela primeira vez explicitava a materialização da obra da artista: sem o arquivo privado, que se mostrava na Culturgest, a obra pública vista no Porto não teria nunca existido.

As duas exposições que agora se podem ver em Lisboa confirmam esta premissa. Em Travessa do Fala-Só, o nome que a artista escolheu para a individual na galeria, mostra um rolo industrial imenso de sarja azul, a mesma que é usada para o fabrico de fatos-de-macaco, na qual desenhou, com lixívia, as figuras estilizadas de uma personagem que segura um rectângulo. “Eu tenho uma imagem gravada no meu espírito desde infância, que é a de um vidraceiro a atravessar a rua com um vidro debaixo do braço. O vidro é transparente. Foi essa imagem que quis trazer para aqui”. O fato-de-macaco, se é certo que o podemos associar a uma profissão manual e oficinal, também poderá ser um traje de trabalho da artista, já que, na obra de Ana Jotta, também as referências culturais se cruzam sem que seja possível estabelecer hierarquias entre elas. O rectângulo foi o formato pictórico que suportou desde o Renascimento a construção da identidade entre a imagem da pintura e a verdadeira imagem. E a artista confirma que esta é também uma exposição sobre a identidade, confessando que a Travessa do Fala-Só aparece aqui porque gosta do nome – “embora não saiba onde fica. Afinal, o artista é alguém que está sempre a falar consigo próprio. E que passa muito tempo sozinho, por força das circunstâncias.”
Para Ana Jotta, uma palavra ou uma expressão nunca é apenas um signo linguístico de sentido único. A pintora está sempre a procurar os sentidos que a desconstrução ou a associação de palavras lhe podem sugerir, e parte daí para novas declinações formais. De certo modo, o seu trabalho, que tem a vocação de assumir todas as formas, todas as disciplinas, todos os sentidos possíveis, provoca-nos sempre para uma síntese conceptual sempre adiada. Não há explicação, a não ser a da forma, verbal ou plástica, que se multiplica e declina infinitamente, um pouco à maneira das anamorfoses maneiristas.

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Recorde-se: a anamorfose é uma técnica de manipulação da imagem que visava, no século XVI, a criação de um sentido apenas decifrável a quem estivesse dentro do segredo da sua leitura. A caveira dissimulada nos Embaixadores de Holbein será talvez o exemplo mais conhecido desta técnica, que na realidade atravessará boa parte da arte do século XX e XXI. As diferentes posições a que Ana Jotta submete o desenho do vidraceiro, sem que nenhuma delas seja superior ou inferior a outra, são um excelente exemplo destas afirmações. Mas elas entendem-se melhor na segunda exposição, que formalmente é muito diferente da primeira, a não ser para um conjunto de peças moldadas em bronze – reproduções de objectos encontrados em casa da artista – que se declinam nos dois espaços.

Ana Jotta, afirma-nos, não gosta do aspecto tecnológico e contemporâneo do MAAT, onde deveria decorrer esta exposição. Chama-lhe Bónus (um sinónimo de prémio, entre outras coisas), e decidiu realizá-la num rés-do-chão de um prédio de habitação em Belém. O espaço possui aquela ausência de qualidade das antigas lojas funcionais, com o seu chão em marmorite barata, as portas pré-fabricadas, os sinais de vitrines e balcões que desapareceram. A surpresa está na cave, pintada de um rosa berrante, antiga escola de dança do varão que a artista deixou quase tal como a encontrou.

De regresso ao piso térreo, convenientemente resguardado dos olhares da rua por uma cortina também rosa, a artista e a curadora, Ana Anacleto, dispuseram nove peças, os Ricochetes, feitas sobre alvos encontrados numa feira da ladra em Bruxelas. Os alvos foram depois trabalhados no atelier de gravura de Hugo Amorim (MEEL Press), através da impressão ou colagem de formas obtidas a partir de peças de um jogo infantil. O resultado remete para a apropriação de géneros (são obras abstractas, sim, mas são também o resultado de acasos felizes nas deambulações de recolectora de Ana Jotta) e estilos, que tanto pode convocar Jasper Johns ou António Areal como um graffiti multicolorido numa parede de Lisboa.
Nada a ver com Travessa do Fala-só. Será? Na realidade, trata-se de mais uma declinação neste inventário de formas, cores, objectos, recordações e memórias que constituem a matriz do seu fazer. No piso térreo, um foco de luz ilumina dramaticamente uma bengala de bronze pousada no chão, mas que é realmente a letra J com que a artista assina já há muito tempo as peças. Noutro canto da sala, uma mesa com outra selecção de peças em bronze, da mesma família do que aquelas que tínhamos visto antes na galeria. Também aqui a associação livre – como cadáveres esquisitos, em suma – é a regra: duas baquetas de tambor estão lado a lado com cacos de uma jarra e mesmo com um livro, uma homenagem ao curador Ricardo Nicolau que acompanha o trabalho de Ana Jotta há anos. Chama-lhe Entrevista perpétua, uma alusão nítida e clara às perguntas, às respostas, às formas, aos objectos e às cores que não têm fim. Ou que estão em constante transformação.

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