Évora ou o embuste do Património da Humanidade

Como é possível que Évora, no deplorável estado de descaracterização que a afecta, consiga manter esse selo de pretensa autenticidade?

Habituado a assistir à destruição extensiva do património arquitectónico, erudito e vernacular, por todo o país, ainda acalentava alguma esperança de poder deparar com alguma urbe em que a autenticidade e as boas práticas de reabilitação pudessem constituir um baluarte de resistência contra a iniquidade descaracterizadora que está a transfigurar Portugal num país de urbanismo desvirtuado e terceiro-mundista, e que desta forma vem enterrando, sem apelo nem agravo, a sua História, a sua identidade e a sua beleza.

Em função do seu estatuto, do seu historial e do seu património, Évora surgia naturalmente como uma hipótese de “aldeia gaulesa”, que resistiria incólume a todas as ameaças da implacável tendência que se tem abatido sobre todos os outros sítios.

A minha recente visita a Évora dissipou todas as dúvidas (e esperanças) e fez-me cair, com estrondo, na constatação de que neste país não há lugar para a sobrevivência do património arquitectónico na sua única possibilidade de existência: a autenticidade preservada. Autenticidade alinha com a conservação dos predicados construtivos originários, assim como com os aspectos formais e estilísticos dali decorrentes.

Quando se assiste em Évora a uma galopante substituição das janelas e portas de madeira por outras de alumínio, com alteração grosseira da sua configuração original, a perplexidade começa a instalar-se. Quando se constata que já não se consegue deparar com uma única casa caiada (a cal, símbolo maior do Alentejo!), estando todo o casario, monumentos incluídos, amortalhados por horrendas e incompatíveis tintas industriais, sentimo-nos chocados.

Mas há muito mais a decorrer perante os nossos olhos: ares condicionados espalhados por entre fachadas e varandas; painéis solares cobrindo telhados; telhas vermelhas dissonantes que substituem as tradicionais telhas de canudo; emaranhado de cabos pretos por todo o lado riscando a integridade das fachadas. Também as lojas, à boa maneira portuguesa, vão rasgando vãos que são preenchidos por vidraças enormes enquadradas por alumínios rutilantes.

E nem os monumentos escapam à febre devoradora de autenticidade: o Palácio da Inquisição já “não existe”; das portas, janelas, paredes e telhado originais não resta traço. O substituto é um rotundo pastiche com arremedos contemporâneos, de estridente dissonância com a envolvente. E a Igreja de São Francisco, que foi sujeita a um recente e demorado processo de reabilitação, apresenta algumas situações caricatas e perturbantes tal como a inexplicável demolição de significativos elementos pré-existentes, as alterações efectuadas em alguns espaços originários e a opção por soluções inadequadas a edifícios antigos, como a utilização de vigas de betão armado, rebocos de cimento ou material parecido, em paredes interiores e exteriores, com o incorrecto e feio acabamento areado, cobertos, por sua vez, com dissonantes tintas industriais de cores deploráveis, e ainda a utilização da intragável telha lusa nas coberturas. Em alguns sítios deparamos com ladrilhos desadequados, puxadores de porta modernos e bizarras janelas de vidro duplo.

Há cerca de dez anos, a historiadora de arte Margarida Donas Botto escreveu um artigo neste mesmo jornal PÚBLICO, tendo a certa altura dito o seguinte: “O facto de a Câmara Municipal de Évora, sob pretexto de assinalar as comemorações dos 20 anos da classificação de Évora como Património da Humanidade, ter decidido efectuar uma operação ‘cosmética’ de pintura de fachadas pode, por si só, ser discutível; seria inócuo — ou até desejável — se essa operação fosse útil à conservação patrimonial, ou seja, efectuada com soluções tecnicamente adequadas, respeito pela diversidade e singularidade dessas fachadas, ou simplesmente assegurando a sua manutenção e o seu valor estético, realçado pela luminosidade, textura e transparência conferidas pela cal. Não o é quando, deliberadamente, se opta pela solução supostamente mais fácil, adoptando tintas industriais plásticas menos exigentes quanto à sua aplicação, mas desadequadas em termos construtivos, demasiado opacas, mais impermeáveis, mais uniformes — e mais caras.”

Parece que não houve por parte das autoridades (câmara municipal à cabeça) qualquer acto de contrição. Bem pelo contrário, os procedimentos incorrectos tornaram-se na norma — as fachadas dos edifícios em Évora erguem-se, hoje em dia, baças e empobrecidas, tendo perdido todo o élan, peso e expressividade que a organicidade e luminosidade da cal, por um lado, e a nobreza das janelas de madeira, por outro, lhes conferiam.

Mas há mais. É preciso desmistificar o mito do Alentejo como o último reduto do Portugal preservado. Percorri recentemente muitas vilas e aldeias alentejanas e não consegui encontrar uma única casa tradicional preservada e em bom estado de conservação. Todas as casas foram liminarmente transfiguradas em autênticos abortos arquitectónicos sob a batuta do mau gosto imperante e de muito cimento, tinta plástica e alumínios. As casas com autenticidade que sobram, as que reflectiam a cultura, o clima e a paisagem, estão tristemente abandonadas e em ruínas.

Por último, parece-me pertinente questionar o real significado do estatuto de Património da Humanidade. Como é possível que Évora, no deplorável estado de descaracterização que a afecta, consiga manter esse selo de pretensa autenticidade? Ou é a própria UNESCO que já não é o que era?

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