Aqui toda a vida é encenada

Não há guiões, nem personagens, nem ficção. O que há nos filmes e fotografias de Sharon Lockhart é pessoas a fazerem de si mesmas, sem inventar nada. Um universo de recriações em que ninguém perde a noção da presença da câmara. Para ver no Museu Berardo, em Lisboa, até 28 de Janeiro.

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Milena, Jaroslaw, 2013 é uma das obras mais desafiantes da exposição My Little Loves mIGUEL mANSO
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Untitled (2007), que mostra duas jovens cegas a ler, numa biblioteca de Los Angeles, na primeira vez em que Sharon Lockhart dirigiu pessoas que não podiam ver mIGUEL mANSO
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When You’re Free, You Run in the Dark, Bula (2016)

Os filmes e as fotografias de Sharon Lockhart não são apenas aquilo que vemos — são o que acontece antes e o que vem depois, são o que resulta de um encontro com pessoas e com lugares que lhe eram estranhos e que hoje lhe são próximos, familiares, íntimos. Parece haver entre ela e estas actrizes — chamemos-lhes assim à falta de melhor palavra para designar uma série de adolescentes e jovens mulheres que fazem de si mesmas —, que conversam em Rudzienko (2016) ou se soltam em When You’re Free, You Run in the Dark (2016), uma confiança daquelas que permitem correr de olhos fechados e que demoram anos a instalar-se. Sharon Lockhart não tem pressa. O tempo, aliás, está no centro do seu trabalho desde a década de 1990, mesmo que só muito recentemente a artista norte-americana se tenha dado conta disso. 

“Tenho 53 anos e só agora começo a ser capaz de olhar para o meu trabalho. Até aqui estava sempre a fazer, a fazer, sem tempo para olhar... Acho que este processo de escrita em que eu e as miúdas trocamos textos obrigou-me a olhar para o que faço, a explicar-me, a parar”, diz ao Ípsilon minutos depois de uma visita guiada à exposição que inaugurou recentemente no Museu Colecção Berardo, My Little Loves, durante uma conversa em que não poderia deixar de fora Rudzienko, o segundo filme da sua trilogia polaca, a que começa com Podwórka (2009) e termina com The Little Review (2017), obra com que representa a Polónia na Bienal de Arte de Veneza, que ainda está a decorrer.

O historiador de arte Pedro Lapa, antigo director deste museu instalado no Centro Cultural de Belém, é o comissário desta exposição que é co-produzida pelo Doclisboa, o festival que termina amanhã e por onde Rudzienko passou. My Little Loves deu-lhe a possibilidade de regressar ao universo de uma artista cuja obra tinha já apresentado no Museu do Chiado (Pine Flat, 2006/2007) e que nunca deixou de acompanhar atentamente. É por isso que, quando a direcção do Doc o convidou a fazer uma escolha para a programação, Lapa pensou de imediato em Lockhart e no trabalho que tem vindo a fazer e que nasce, em boa parte, da sua capacidade para “consubstanciar laços afectivos”.

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No trabalho de Lockhart tudo é representação, performance, mas sempre com o contributo directo de quem aparece na fotografia ou na imagem em movimento Miguel Manso

“Em muitas das obras que podemos ver agora no museu, Sharon dá uma voz específica às crianças e aos adolescentes, cujas opiniões nos chegam habitualmente através dos adultos. E isso acontece porque a sua obra tem uma participação muito significativa dos envolvidos”, diz, sublinhando a preocupação da artista norte-americana em não invadir a privacidade dos jovens que aceitam colaborar com ela, recorrendo, nos seus filmes, à câmara fixa e ao registo em tempo real para se “salvaguardar de uma excessiva interioridade”.

Embora tenha obras feitas nos Estados Unidos — uma fotografia de 2007 que mostra duas meninas cegas a ler numa biblioteca de LA ou Eight Decades of My Life, for Sharon Lockhart (after Harry Smith), uma obra de James Benning a partir dos aviões de papel que Smith (1923-1991), artista e realizador, apanhou na rua ao longo da vida e que estão hoje no arquivo do Museu Getty —, My Little Loves concentra atenções no trabalho que Lockhart tem vindo a desenvolver na Polónia desde 2009, parando nos pátios de cidades que cresceram à sombra das grandes indústrias têxteis e em centros de reabilitação social para jovens, em particular o de Rudzienko.

“O tempo, assim como as pessoas que são, por algum motivo, ignoradas, estão sempre no que faço. Em Rudzienko, por exemplo, quis levar as miúdas para o meio da natureza para lhes dar uma sensação de liberdade que elas não têm. Depois quis que desenvolvessem a sua própria voz através da escrita, de debates, do movimento, enquanto tentava mostrar-lhes que tempo e relógio não são a mesma coisa”, diz a artista.

Tantas vezes associado aos universos da antropologia e da etnografia, por causa da sua entrega às comunidades, o trabalho de Lockhart é deles absolutamente distinto, defende Lapa, porque não caminha para uma “formalização” das relações humanas: “A Sharon não quer criar uma grelha de leitura destas comunidades, o que ela quer é mostrar os desvios-padrão, o que nelas é singular, diferente.”

Quando se trata desta americana, o grau de envolvimento com os contextos que aborda é de tal forma profundo, continua o comissário, que passa a ser um “substrato” da própria obra, tão importante como aquilo que se vê: “As relações humanas tornam-se um meio, como o filme e a fotografia. E tudo é feito com uma tal densidade que todas estas figuras são chamadas a participar na organização de uma representação de si. O processo é matéria de trabalho, torna-se visível.”

Sem tradução

Quem não conheça a obra desta americana que vive em Los Angeles e se veja perante um filme como Podwórka, por exemplo, é provável que imagine que registou aquela brincadeira de crianças, espontânea, sem deixar que a vissem, como se as tivesse surpreendido. Nada mais falso. “Estes pátios são como teatros de vida perfeitos e, quando os filmo, neles tudo é dirigido, tudo é encenado a partir da realidade. Nunca capto nada que está a acontecer de forma natural.”

Foi neste pátio que se vê em Podwórka que conheceu uma criança de nove anos, hoje com 18, que se tornou central no trabalho que tem vindo a desenvolver na Polónia. Milena tinha subido ao telhado e estava a brincar no meio dos outros, recorda Lockhart. “As brincadeiras em cada um destes pátios são determinadas pela arquitectura e pelo que podem fazer com ela. Naquele pátio há um sítio fantástico de onde podem saltar depois de ver toda a vida a acontecer cá em baixo. As crianças mais pequenas estavam sempre cá em baixo. A Milena era uma espécie de chefe do pátio. Eu quis logo filmá-la, mas ela não aparece no filme. Aliás, ela nunca aparece até 2013. Estava ao meu lado, a dirigir tudo, a mandar nos outros miúdos. Estava junto à câmara a dizer-me o que é que eu tinha de fazer.”

E isto tudo sem que Lockhart falasse uma palavra de polaco e Milena uma palavra de inglês. A artista não gosta de recorrer a tradutores porque teve já más experiências no passado, e hoje, mesmo com a jovem que conheceu há nove anos, a comunicação verbal é muito diminuta: “Já cheguei a estar a conversar com a Milena noite fora, até às quatro da manhã, sem que nenhuma de nós soubesse o que a outra estava a dizer. E é fantástico. Acho que há uma fisicalidade que é entendível por todos, uma gestualidade que chega ao outro.”

Nos filmes e fotografias que se vêem em My Little Loves, as crianças e adolescentes têm a cidade por cenário, o Centro de Socioterapia para Jovens de Rudzienko ou uma quinta que Lockhart arrendou perto desta instituição cuja população conhece bem. Há anos que faz uma série de workshops com as raparigas que, pelos mais variados motivos, ali foram parar. Algumas, como Milena, depois de terem passado por outros centros semelhantes. A artista não gosta de falar da vida destas adolescentes, mas explica que Rudzienko, apesar de muito melhor do que outras instituições que teve oportunidade de visitar na Polónia, continua a ser um sítio “duro” em que “a vida é ditada pelo relógio, pelas rotinas”, e em que há, de facto, uma “ausência de liberdade que é muito difícil de compreender quando se tem vontade de descobrir tudo”.

Rudzienko está no nível anterior ao dos centros de detenção para jovens, e parte do trabalho que a artista ali desenvolve através de ateliers de expressão corporal ou de escrita tem por objectivo mostrar àquelas jovens de quem a sociedade parece não esperar muito que têm uma voz e que, se se respeitarem e colaborarem, aquele lugar pode ser poderoso.

“Creio que esta nova geração na Polónia é muito diferente das anteriores, é mais aberta, não tem a bagagem que trazem do passado os seus avós, mas têm outra que vem do facto de lhes ter sido colado o rótulo de ‘difícil’. Mas quem diz que estas adolescentes são ‘difíceis’, quem lhes faz testes para saber se usam drogas, quem as faz viver segundo o cronómetro, provavelmente não se esforçou muito para as conhecer. (...) É incrível pensar que nunca antes tinham perguntado a estas miúdas o que pensavam sobre isto ou aquilo. Como é que se pode chegar à adolescência sem que ninguém queira saber qual é a nossa opinião sobre nada? Hoje, elas sabem que o que elas pensam, que o que elas são”, conta.

Milena está hoje mais segura, diz a artista. Quem a vê correr em Antoine/Milena (2015), filme em que faz a sua própria interpretação da cena final de Os 400 Golpes (1959), de François Truffaut, não duvida da sua força e da sua determinação, sobretudo quando ela enfrenta a câmara, num gesto que não tem nada que ver com o original da Nouvelle Vague: “Eu estava a filmá-la e não sabia que ela ia confrontar a câmara. Acho que foi a primeira vez que verdadeiramente a vi.”

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Filme Podwórka

Milena, a Mona Lisa

Agora, Milena acaba de regressar de Londres, onde esteve uns meses a trabalhar. Já não está em Rudzienko. Quando Lockhart a conheceu, vivia com a avó e era ainda mais tímida e reservada do que é hoje. Milena, Jaroslaw, 2013, um tríptico de 2015, em que aparece a esconder a cara da câmara até ter coragem para a enfrentar, espreitando por entre as mãos em concha, é um dos primeiros trabalhos em que aparece.

“Ela não colaborava muito, mas gostava do jogo que a encenação trazia. Aqui faz uma espécie de dança com a máquina fotográfica.” Uma dança que a exposição do Museu Berardo transporta para o espaço, montando as fotografias de forma a obrigar o visitante a circular. “Naquela em que olha para nós, é como Mona Lisa — o seu olhar segue-nos onde quer que estejamos.”

Para Pedro Lapa, Milena, Jaroslaw, 2013 é um exemplo evidente da capacidade que uma obra de arte tem de se relacionar com quem a observa: “Se queremos ver o tríptico todo, temos de nos mover e de entrar na teia que este jogo da criança tece, temos de nos envolver fisicamente. É como se a brincadeira se repetisse uma e outra vez sempre que alguém se aproxima das fotografias.”

Quando conheceu Milena, Lockhart não sabia que acabaria por trabalhar em Rudzienko (demorou três anos a fazer o filme homónimo), por conhecer mais de 150 miúdas que por ali passaram ou ainda lá estão, e que viria a representar a Polónia na Bienal de Arte de Veneza.

Em Veneza, Lockhart está a mostrar The Little Review, um trabalho que vai buscar o seu nome a um suplemento semanal que foi publicado entre 1926 e 1939 com o diário Nasz Przeglad (Our Review) e que era integralmente escrito por crianças e jovens, sob a coordenação do pediatra Janusz Korczak, um judeu polaco e pedagogo inovador que foi assassinado no campo de concentração de Treblinka em 1942, depois de se ter recusado a abandonar o orfanato que dirigia no gueto de Varsóvia.

Korczak foi uma verdadeira descoberta para Lockhart, e ter o suplemento que o médico dirigiu traduzido para inglês (e para português, disponível na exposição) pela primeira vez é um presente que quis deixar a todos os que se interessam pelos direitos humanos, sobretudo os das crianças.

“No seu orfanato, Korczak tinha um parlamento para as crianças, um tribunal em que elas podiam julgar os seus educadores se achassem que eles se tinham portado mal. Ele era o primeiro a admitir os seus erros, defendia os direitos dos trabalhadores, das crianças, a liberdade de expressão, a verdade... Tudo isto me atrai nele.”

Em The Little Review, a artista filma as adolescentes sobre um fundo preto, sem cenário, para que quem as vê se concentre no que têm para dizer, nos seus gestos, explica Pedro Lapa. “Ela retira-se para trás da câmara para a poder manipular, fazendo uso das estratégias características do filme experimental, de que a sua obra é devedora, como a alternância entre o tempo real e o slow motion.”

Nesta obra, como nos filmes que agora se podem ver em Lisboa, Lockhart põe em evidência a relação muito particular que a fotografia e a imagem em movimento têm na sua obra. Para Lapa, ambas se contaminam: “Nos filmes há situações próximas do fotográfico — figuras a ler ou a dormir, por exemplo — ao mesmo tempo que as fotografias têm uma tipologia de enquadramento e uma relação entre as pessoas que suscitam uma continuidade. Em qualquer dos casos, tudo em Sharon Lockhart aponta para a sedimentação de uma imagem.”

Lockhart explica, assim, a diferença de abordagem a um e outro meio: “Parte da diferença está em quem olha, na duração desse olhar. Uma fotografia é algo a que podemos voltar uma vez, e mais outra e outra. Podemos sentar-nos com ela ou, simplesmente, ignorá-la ao passar. No filme fazemos um esforço consciente — entramos e saímos, há um antes e um depois.”

Como há um antes e haverá um depois da Polónia na vida da artista. “Recentemente perguntaram-me como é que eu tinha feito a diferença na vida destas miúdas... Fiquei espantada, porque a pergunta devia ser ao contrário — foram elas que me mudaram, sou eu que já não sou a mesma.”

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