Acórdão da polémica: as bestas somos nós

As opiniões publicada e pública, com a força da ligeireza das televisões, transformaram a reacção ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto num autêntico linchamento, com agravante de que a pena popular é injusta. O Juiz fez um trabalho sério e honesto.

A reacção pública ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre o caso de violência doméstica em Felgueiras transformou-se num autêntico linchamento público do juiz Neto de Moura, com total responsabilidade dos jornalistas e comentadores que incitaram a opinião pública com base na ignorância jurídica e no desconhecimento dos factos.

A cobertura mediática, em regra deturpada, sobretudo nas televisões, gerou uma interpretação errada do acórdão e arrastou o caso para o julgamento popular, convocando entidades e instituições com responsabilidades jurídicas – como o Conselho Superior de Magistratura ou o Bastonário da Ordem dos Advogados – para o campo da irracionalidade e histeria colectivas.

E o mais grave é que toda esta manifestação pública é injusta, presta um mau serviço à Justiça e “condena” um juiz cujo trabalho (neste caso) foi sério e honesto.

Vamos aos factos.

Logo no início da formação, os juristas aprendem que não devem apreciar publicamente casos concretos, essencialmente porque o desconhecimento da matéria de facto (do que realmente aconteceu) e dos pormenores do julgamento leva facilmente a interpretações erradas, mas, desta vez teremos de ignorar esta cautela, porque é impossível debater este tema sem entrar na apreciação concreta.

Primeiro é preciso esclarecer alguns pontos que a opinião pública parece desconhecer, designadamente que o adultério não esteve em julgamento, que a mulher agredida (assistente no processo) e a sua conduta não estiveram em julgamento (i.e., o julgamento não foi do homem contra a mulher ou vice-versa), foi um julgamento “apenas” da conduta do homem, pelo crime de violência doméstica que praticou e que o tribunal deu como provado.

O homem, à data dos factos ainda marido da vítima (estavam separados), agrediu a mulher. O tribunal, em primeira estância, condenou-o a 1,3 anos de prisão com pena suspensa. O Ministério Público (MP) recorreu da sentença e o tribunal superior apreciou a matéria de recurso e concluiu, neste acórdão da polémica, pela manutenção da primeira sentença.

O MP contestou a sentença inicial em duas áreas: quanto aos factos dados como provados e quanto à suspensão da pena.

Os factos que o MP diz terem ficado provados em tribunal e a apreciação do acórdão são estes:

  • Que o homem já sabia, há quatro meses e meio, da traição da mulher pelo que não estaria sob perturbação quando a agrediu. O acórdão – após consideração e fundamentação jurídica sobre a impugnação da matéria de facto em recurso – esclarece que a primeira sentença dá esse facto como provado.
  • Que o homem agiu premeditadamente arranjando forma, em conluio com o outro arguido (ex-amante da mulher), de levar a vítima até ao local onde a agrediu. O acórdão sustenta que “nada, rigorosamente, nada” permite afirmar que se fez prova disso em julgamento.
  • Que o homem terá dito à filha (de ambos), repetidamente, durante três meses, ao almoço que tinham ao Domingo: “Durante a semana fui várias vezes ao salão da tua mãe para a matar, a sorte dela era não estar lá”. O acórdão responde que a testemunha deste ponto, a filha, declarou que o pai dizia que lhe apetecia matar a mãe e matar-se de seguida “o que é bem diferente”. (Note-se que a filha, maior, a estudar na faculdade, vivia nesse período com a mãe. Note-se ainda, para dar uma ideia quanto à intenção de matar, que o homem dispunha de armas de fogo, pistola e espingarda, mas que quando foi ao local agredir a mulher não as levou).

Relativamente à suspensão da pena, a magistrada do MP, que assina o recurso, discorda “em matéria de direito” (e não de facto, note-se) da pena de 1,3 anos e de ter ficado suspensa “por não corresponder à gravidade dos factos nem às necessidades de prevenção” e defendia a prisão por 3,6 anos.

A primeira sentença, que fixou a pena em 1,3 anos de prisão (a moldura penal prevista vai de um mínimo de um ano a um máximo de cinco) refere que “no que concerne ao crime de violência doméstica, o grau de ilicitude é bastante elevado, tendo em atenção o desrespeito pela integridade física e psíquica da queixosa, que além de ser sua esposa é também mãe da sua filha”, que a agressão ocorreu num “contexto complicado” em que o homem sabia do relacionamento extra-conjugal da sua esposa, que estava “fragilizado, ao ponto de ter de recorrer a um internamento num hospital psiquiátrico”, e que “o sentimento que todas esta situação desencadeia faz com que as pessoas reajam de modo imprevisível e do qual mais tarde se arrependem – como foi o caso”.

O juiz da primeira sentença destaca ainda “o facto de o arguido apenas ter agredido, por uma só vez, a ofendida, mas com resultados graves e que até podiam ser mais gravosos, atento o instrumento utilizado – uma moca – e ainda o facto de toda a situação ter sido potenciada pelo outro co-arguido que lhe ligou a dizer onde estava a esposa e que estava com ele”.

A sentença inicial conclui que o contexto “acabou por condicionar o discernimento” do homem “diminuindo a sua culpa no sentido de que o mesmo agiu condicionado ou pelo menos manietado no seu discernimento e toldado por sentimentos de revolta e ciúmes, fruto do sofrimento que sentia na altura devido à ‘traição’ da sua esposa”.

O MP entende que quatro meses depois de saber que a mulher o traía, o homem já não poderia estar “condicionado ou manietado e toldado pelo sentimento de revolta e ciúmes devido à traição” pelo que em vez da “inaceitável tolerância e até compreensão” da sentença inicial, pedia uma condenação em severa e efectiva pena de prisão.

Mas o Tribunal da Relação entende que se mantinha o estado de perturbação, considerando que a apreciação da magistrada do MP “afronta a razão e as regras da experiência”.

“É óbvio que, se o arguido foi internado devido ao seu estado de depressão, esta teria que ser profunda”, sublinha o acórdão onde é acrescentado que a depressão é uma doença grave cuja cura pode prolongar-se por anos, e referindo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Com isto, o Tribunal da Relação do Porto mantém o juízo probatório e valorativo que tinha sido feito pelo primeiro juiz.

Os juízes desembargadores fundamentam ainda a suspensão da pena com base legal e na doutrina, considerando que, no caso deste homem, se trata de um cidadão fiel ao direito, sem antecedentes criminais, que se mostra perfeitamente integrado na sociedade e que “tudo indica que os actos praticados foram meramente ocasionais, que não se repetirão”.

E até agora não entrámos ainda na frase da Bíblia, que tem sido o cerne da louca polémica.

Note-se que o acórdão em causa tem 22 páginas, a Bíblia é referida numa frase inserida num conjunto de (apenas) dois parágrafos de consideração sobre a história e os costumes da censura social ao adultério que foram incluídos na tentativa de melhor enquadrar o efeito desta conduta moralmente censurada no estado de espírito do homem.

Esse trecho é absolutamente acessório, marginal, à decisão da causa, porque não altera a matéria de facto nem é necessário à sustentação da atenuante que os tribunais entenderam ser justa. A fundamentação desta atenuante é amplamente estribada em elementos objectivos, como o relatório médico sobre a condição psíquica do homem.

O acórdão é normalíssimo, uma peça juridicamente inatacável, e não está em causa apenas um juiz. Foram três os juízes envolvidos (um deles uma mulher); o de primeira instância e dois desembargadores, pelo que a haver bestas, serão três.

A maioria dos jornalistas e comentadores que trataram o caso foram superficiais e induziram a opinião pública em erro, ao permitirem que se pensasse que estava em julgamento o adultério, que o juiz fundamentou a decisão com base na Bíblia e que o homem, agressor, ficou impune. Nada disto é verdade. Os tribunais censuraram juridicamente a conduta do homem, o agressor foi condenado com a pena que a justiça, após dupla apreciação, entendeu ser proporcional, pena de prisão, suspensa, a uma multa de 1750 euros e a manter-se afastado da ex-mulher.

Quem ler o acórdão na íntegra – e o PÚBLICO disponibiliza-o online – perceberá melhor o que aqui está escrito e que, no mínimo, o trabalho do juízes, neste caso, não merece o que foi dito.

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