“Nem todas as proclamações arcaicas têm relevância disciplinar”, diz tutela dos juízes sobre acórdão do adultério

Conselho Superior da Magistratura recorda que obediência dos magistrados à Constituição implica que as suas decisões levem em linha de conta “os princípios da igualdade de género e da laicidade do Estado”

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Imagem de um encontro de juízes organizado pelo Conselho Superior da Magistratura Sérgio Azenha

O Conselho Superior da Magistratura (CSM), órgão responsável pela disciplina dos juízes, já reagiu ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto em que dois magistrados declaram ser compreensível a punição violenta das “mulheres adúlteras”.

Admitindo que a sentença em causa, datada de 11 de Outubro passado, “tem provocado vivas críticas por parte de vastos sectores da opinião pública”, o CSM alega, numa nota informativa, que “nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar”. Se o assunto será ou não discutido no seu seio, não esclarece: este órgão de cúpula dos juízes diz apenas que cabe ao seu conselho plenário pronunciar-se sobre a relevância disciplinar deste tipo de situações.

“O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, escreveu o juiz desembargador Neto de Moura no acórdão em causa, que é assinado também pela sua colega Maria Luísa Arantes.

Trata-se de um caso de violência doméstica, em que a vítima foi agredida pelo ex-marido e pelo homem com quem tinha mantido uma relação extraconjugal (que motivou a separação do casal, meses antes da agressão). Em Junho de 2015, depois de ser sequestrada pelo ex-amante, que lhe pedia que retomassem a relação, o homem chamou o ex-cônjuge da vítima para juntos a confrontarem. Na agressão, foi usada uma moca com pregos. 

Os atacantes foram condenados pelo Tribunal de Felgueiras a penas suspensas. O Ministério Público recorreu da sentença, numa tentativa de obter penas mais pesadas, mas a decisão foi confirmada pela Relação do Porto. Na sua argumentação, a dupla de desembargadores recorre a fundamentação de cariz religioso: “O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.”

“Quando um acórdão da Relação fala disto com normalidade, em vez de com censura, está de certa forma a tornar mais legítimo que haja mais homens a serem violentos contra as suas mulheres. Está a colocar em risco a vida de muitas mulheres em Portugal”, observa Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, adiantando que a associação Capazes vai apresentar uma queixa ao Conselho Superior de Magistratura.

A mesma nota informativa do CSM recorda que a obediência dos juízes à Constituição determina que as decisões dos magistrados levem em linha de conta “os princípios da igualdade de género e da laicidade do Estado”, “sem obediência ou expressão de posições ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento jurídico da sociedade em cada momento”.

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