Bruxas, sapos e demónios: o azar em Montalegre enfrenta-se com festa

A vila transmontana celebrou a última sexta-feira 13 do ano na presença de cerca de 60 mil pessoas. Na festa que tem Padre Fontes como protagonista, a esconjura da queimada voltou a ser o ponto alto do evento.

Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta
Fotogaleria
Paulo Pimenta

“Não sou supersticioso porque dá azar”, diz Marco Inácio que viajou com a família de Esposende até Montalegre para celebrar a segunda e última sexta-feira 13 do ano. Não acredita em males de espírito, nem em mezinhas que os curem. Subiu pela primeira vez à vila do distrito de Vila Real para lavar a alma de outras maleitas: o stress e a azáfama diária. Estas curam-se com festa e com a companhia dos mais próximos num fim-de-semana longe de casa.

É uma das cerca de 60 mil pessoas que por lá passaram na última sexta-feira e lá passam todas as vezes que o calendário acerta o “número do azar” com o penúltimo dia da semana. É dia e noite de as bruxas andarem à solta em Montalegre, coisa que não assusta as milhares de pessoas vindas de vários pontos do país e de outros, sobretudo de Espanha (Galiza), para enfrentar o azar com folia.

São 13h13m em ponto e o som de foguetes assinala a abertura das festividades no largo frente aos Paços do Concelho. Já lá estão montados uma feira medieval e um palco - um dos vários que se vão encontrando pelo caminho até chegar ao castelo da vila, erigido na segunda metade do século XIII. Esse caminho faz-se pela Rua Direita, já com alguns visitantes, parte deles vestidos a rigor, com máscaras alusivas ao festejo, para não destoarem do ambiente criado na vila.

Nesse trajecto, há fachadas enfeitadas com figuras de bruxas e ouve-se uma banda sonora que transporta para o passado celta desta localidade do Norte de Portugal. A animação é feita por conjuntos musicais que passeiam gaitas-de-foles, tarolas e bombos e espalham pela vila esse som que remete para tempos ancestrais. Os locais vão recebendo os primeiros forasteiros e prepara-se uma jornada que quem já experienciou promete ser passada com a presença de uma multidão que quase não cabe na vila, ainda que, ao início da tarde, a julgar pela moldura humana, nada faça adivinhar que assim será. Já lá vamos.

Nem sempre foi assim. Em 2002, quando Montalegre começou a celebrar as sextas-feiras 13, só um pequeno grupo de pessoas participava. Na verdade, os primeiros passos foram dados antes, ainda em noite de Halloween, explica o vice-presidente da autarquia, David Teixeira. É do cruzamento dessa celebração com o Congresso de Medicina Popular de Vilar de Perdizes, do Padre Fontes (natural de Montalegre), personagem central também desta festa, que é criada esta tradição. Nessa altura, explica, três restaurantes da vila faziam um jantar baseado nalgumas crenças populares do imaginário tradicional local. No fim desses jantares o Padre Fontes passava pelos três restaurantes para servir a queimada (“mistela abençoada”) e fazer o esconjuro.

Num dos anos, num restaurante perto da barragem dos Pisões, aparecem 150 pessoas e muitas outras que queriam participar e não tiveram lugar. É aí que se percebe que o potencial do evento aumentaria se fosse realizado fora de portas. Passa para o Mercado Municipal, junto ao pelourinho, e mais tarde para o castelo, onde actualmente decorrem as principais actividades de palco. Momento alto manteve-se “o confronto entre o bem e o mal” que “terminava esconjurado” pelo Padre Fontes, sendo depois servida a queimada. 

O evento, que custa à câmara cerca de 150 mil euros, foi crescendo “de forma consistente” e começa a aparecer cada vez mais gente de fora. Nos últimos anos passam por Montalegre aproximadamente 60 mil curiosos, responsáveis por um “impacto significativo” na economia local. “O alojamento está cheio em Montalegre, mas também em Boticas, Chaves e mesmo nalguns pontos da Galiza”, diz.

A população da vila não chega às 2000 pessoas e no concelho vivem cerca de 10500. De repente, todos os anos por altura das sextas-feiras 13, a “população” aumenta temporariamente para quase seis vezes mais.

Preservar o imaginário do sobrenatural

Quem lá vai procura descobrir e viver o imaginário de um território que há alguns anos “era um verdadeiro enclave entre a Galiza e o Norte de Portugal”. Esse isolamento é um dos motivos para que se tenha preservado “uma identidade muito própria e tradições muito vincadas”. Parte importante dessas tradições está directamente ligada ao sobrenatural e à ideia de que a bruxaria teria poderes curativos.

Será importante enquadrar a realidade de outras épocas para que se entenda a necessidade de recorrer a mezinhas e crenças populares como cura para “males físicos” e “males de espírito”. “Há 40 anos só havia um médico na vila e andava a cavalo. A população era obrigada a recorrer a alguma sabedoria para se defender dos males que iam acontecendo”, afirma David Teixeira.

O vice-presidente conta que é neto de uma “mulher de virtude”, na altura consideradas bruxas. “Lembro-me de ser pequeno e de a acompanhar para fazer fumadouros que se deixavam nas encruzilhadas de caminhos ou de ir a casas de pessoas para curar males”, recorda o autarca, afirmando que “eram estas mulheres que tinham um dom” responsáveis por substituir a medicina.

É todo este legado do passado aliado a um lado mais festivo o segredo para o sucesso de um evento que cresceu ao longo dos anos e se tornou num fenómeno em termos de público.

Quase ao final da tarde, já são muitos os que circulam na Rua Direita. Em vários pontos da vila há equipas de caracterização que gratuitamente vão transformando os visitantes em bruxas, demónios e afins. Os restaurantes já com as reservas completas há várias semanas vão adaptando a decoração para a hora de servir o jantar. Nas encruzilhadas ardem fogueiras para espantar os males.

As filas de carros estacionados vão aumentando e continuam a chegar camionetas de excursões para deixar mais visitantes no centro da vila.   

Numa dessas excursões chega Lavina, indiana a estudar na Universidade do Minho, que veio acompanhada de outros alunos estrangeiros integrados em programas de intercâmbio. A tradição de Montalegre é-lhe desconhecida. Foi lá pela festa e pela animação. Ainda que não festeje na sua terra natal, o Halloween sempre lhe despertou algum fascínio. A imagem que criou desta festa celebrada nos Estados Unidos foi construída a partir de alguns filmes de fora do país. A sexta-feira 13 em Montalegre cumpre pela semelhança que tem com esse imaginário criado. 

O padre do futuro que é astronauta

Ao final da noite, perto da hora do evento principal junto ao castelo, com a peça "Sexta 13 – O Regresso Mágico", da responsabilidade da actriz e encenadora Paulina Almeida, torna-se impraticável circular na Rua Direita, tal é o número de pessoas que tenta furar até chegar ao palco – algo que terá que ser revisto pela organização do evento. Àquela hora o público que lá está, mais maduro, substituiu o da tarde, maioritariamente composto por famílias. Tenta-se garantir o melhor lugar para assistir ao ponto alto da noite: o esconjuro da queimada, integrado na peça que tem como protagonista o Padre Fontes.

No palco circula uma criatura gigante que luta contra um dragão que usa a chamas que saem da boca como arma. A luta entre o bem e o mal é feita perante uma multidão que preenche todo o anfiteatro natural entre o castelo e o palco. Peças fundamentais para ser travada essa luta são as bruxas “exiladas durante séculos” numa dimensão oculta. É Padre Fontes o responsável por libertá-las, numa viagem no espaço e no tempo em busca do conhecimento ancestral destas guardiãs da sabedoria popular.

Eis que Padre Fontes entra em cena, com um fato de astronauta vestido, pronto para a libertação, enquanto são lançados sapos (adereços) para o público. “Aqui em Montalegre os druidas dançam com a concha redonda na poção sagrada, na amizade alada. Vinde com a boca, vinde com a mão, que esta queimada aquece e inebria de bem o coração” - é o final da lenga-lenga da esconjura da queimada pronta a servir a todos os presentes para que espantem os males.

Se aquela mistura de aguardente, açúcar e limão faz efeito? “Não faz nada”, diz-nos Padre Fontes, também conhecido como Dom Bruxo, mas fará a quem acredita. “Aqui o azar confronta-se com festa”, diz. Naquela sexta-feira 13, a última do ano, esconjurou a seca e a terra queimada.

Em pleno século XXI, se ainda há bruxas, agora são outras: “Hoje teríamos que esconjurar banqueiros que desviam dinheiro e políticos que nos enganam e investem em proveito próprio”.

Sugerir correcção
Comentar