Imprensa – A Sensibilidade e os Limites

O direito de informação pela imprensa não é um direito absoluto. Há direitos humanos e cívicos ainda mais básicos, que lhe são superiores.

Um dos mais sinuosos perigos que as sociedades contemporâneas enfrentam é o que decorre daqueles que, invocando um “valor superior” a todos nós, reivindicam o tenebroso poder de desprezar os valores essenciais do indivíduo para, numa visão inquisitorial, subjugar tudo o que os contrarie. A política é fértil nesses fanatismos impositivos, como o são as religiões. E, tenhamos a coragem de o dizer, alguma imprensa também frequentemente o é.

Naturalmente, é sempre injusto generalizar. Em todo o mundo, muitos políticos são dignos e íntegros, a maioria esmagadora das pessoas religiosas é tolerante e a vasta maioria dos jornalistas tenta executar um trabalho competente e consciencioso. Na realidade, são imensos os jornalistas que se sentem incomodados com os abusos que colegas seus praticam.

Para determinada imprensa vale tudo para fazer “notícia”, especialmente se envolver escândalo, sangue, drama, sordidez, polémica destrutiva. Num mercado jornalístico que, na maior parte do mundo, presencia uma implosão de leitores e espetadores, a competição pelo “furo jornalístico” passa a corporizar também o desespero da sobrevivência, que não justifica a perda de decência. Princípios morais básicos de qualquer sociedade evoluída são atropelados. Viola-se a privacidade dos cidadãos. Confunde-se informação com a mais repugnante coscuvilhice. Depois de se crucificarem cidadãos na praça pública sem os direitos de defesa (nos âmbitos próprios) que constitucional e moralmente lhes assistem numa sociedade civilizada, em muitos casos chega-se à conclusão de que são inocentes. Mas, entretanto, destruiu-se-lhes a vida pessoal e a carreira. É o supremo exemplo da falta de valores, é o princípio totalitário do “vale-tudo”. É a negação dos direitos fundamentais do cidadão. É a sabotagem da civilização e o retrocesso à barbárie em que os cidadãos estão desprotegidos perante alguns que se arrogam o direito de abusar, magoar e prejudicar impunemente. É também uma feira de vaidades em que alguns gostam de sublimar complexos pessoais com a sensação de terem “poder” para magoar outros.

Ganha-se dinheiro com a desgraça, o sofrimento e a violação da privacidade de outros. Se os atingidos reagem, faz-se-lhes ainda pior. Cria-se um clima de medo, inadmissível em qualquer país desenvolvido do séc. XXI. Não é apenas um caso de amoralidade. Roubam-se informações que a sociedade garante aos cidadãos serem da sua esfera de privacidade e protegidas como elementares direitos humanos e cívicos. É, de facto, um caso de massiva violação de direitos humanos. Violam-se processos em segredo de justiça. São crimes em série. Uns países reagem, outros não. Uns têm medo, outros não. O direito de informação pela imprensa não é um direito absoluto. Há direitos humanos e cívicos ainda mais básicos, que lhe são superiores.

Jornalistas têm sido fundamentais para apontar situações condenáveis que outros poderes escuros (designadamente na política) escondem. Mas jornalistas têm também sido responsáveis por imensas injustiças que destruíram vidas de cidadãos e, por isso, tornaram-se criminosos, não heróis.

O Estado de Direito existe para conduzir investigação e punir de uma forma que respeite escrupulosamente os direitos do cidadão, o rigor da investigação e a presunção de inocência. No entanto, alguns jornalistas violam o Estado de Direito e os direitos dos cidadãos, arrogando-se a inexpugnável condição semi-divina de executores de uma moderna Inquisição.

Um dos maiores jornais do mundo, o britânico News of the World, foi objeto de acusações sobre repugnantes e criminosas atividades ao longo de muitos anos, que foram presumivelmente cometidas “em nome do direito à informação” de acordo com o princípio de que tudo vale com esse propósito. Essas acusações indicaram que milhares de cidadãos tiveram os seus contactos telefónicos pessoais sistematicamente violados, desde membros da coroa britânica até comuns cidadãos e mesmo pessoas em situações de grande drama pessoal, como familiares de vítimas de atentados terroristas ou de uma criança que fora raptada e depois assassinada. O jornal foi acusado de praticar subornos para tentar comprar investigadores policiais, num ato de corrupção gravíssima para proteger crimes jornalísticos. Alguns parecem julgar-se acima dos cidadãos e da comunidade. Entretanto, jornalistas descobrem profusamente corruptos ou presumíveis corruptos em praticamente todas as classes profissionais, exceto entre jornalistas.

Em Portugal, um país que carece criticamente de inovação e de (verdadeira) renovação, políticos e jornalistas (que possuem uma rede de duvidosos interesses cruzados) conjugam-se para que, entre 10 milhões de portugueses, sejam sempre basicamente os mesmos políticos dos aparelhos partidários e os mesmos jornalistas a figurar em debates televisivos e como comentadores. O país não se renova e não muda também por esse motivo. A imprensa parcialmente protege o status quo. Os interesses enquistados são promovidos enquanto o resto do país com imensos valores excecionais é tratado como se não existisse em matéria de liderança de opinião e de mudança.

A censura persiste, decidindo quem fala e quem se cala, quem se publica e quem se omite, quem se enaltece e quem se destrói. Intervenções de um indivíduo são truncadas e descontextualizadas para se projetar uma ideia diferente da que foi produzida.

Estes comentários, ilustrados pelo sombrio caso do News of the World, não constituem uma crítica conceptual à imprensa. Pelo contrário, são uma defesa do verdadeiro e digno jornalismo, perante aqueles que, em seu nome, o diminuem. A maioria esmagadora dos jornalistas honra a imprensa, informando sem violar a privacidade, sem violar básicos direitos humanos, sem cometer crimes para obter informação, com sensibilidade e respeito pelos cidadãos. A denúncia daqueles abusos configura-se como um sincero elogio a todos aqueles que sabem ser bons jornalistas.

 

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