Uma viagem à boleia dos clássicos nacionais de duas rodas

Fundador Dakota, Casal Boss, Famel Zundapp, SIS Sachs Andorinha, Confersil Dina 104 ou V5 são alguns dos 80 modelos expostos na Casa do Design, na exposição Motos de Portugal, que traça a cronologia da indústria de duas rodas nacional do século passado.

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Adriano Miranda
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“A Empreza Automobilista Portugueza, com a Motocyclette Werner estabeleceu o record Porto-Lisboa (336 km) em 11h e 26min que ainda hoje possue; os outros constructores estabeleceram os tempos Figueira da Foz-Lisboa e Guarda-Coimbra que a mesma Motocyclette Werner ‘typo touriste’ e sem auxílio de pedaes, com a maior das facilidades, em dois dias seguidos, 3 e 4 de julho, bateu brilhantemente”, escrevia a publicação Portugal Chauffeur, na grafia usada em 1903, quando foi publicado o excerto do artigo.

Um feito brilhante para a marca de motorizadas francesa que na altura conseguiu ligar as duas primeiras cidades do país – imagine-se – em pouco mais de 11 horas, a uma velocidade média estonteante de pouco mais de 30 quilómetros por hora. Este e outros pedaços da história da evolução dos veículos motorizados de duas rodas em solo nacional fazem parte da exposição Motos de Portugal, com curadoria de Emanuel Barbosa, designer e docente da Escola Superior de Artes e Design (ESAD), que reuniu com a ajuda de vários coleccionadores nacionais um espólio de cerca de oitenta motorizadas, que até 27 de Janeiro estarão expostas na Casa do Design, em Matosinhos.

Pertence ao estabelecimento João Garrido, no Porto, o primeiro registo de venda de automóveis e motas em Portugal. Em 1894 foi vendida a primeira “bicycleta automóvel”, em 1898 o primeiro “tricyclo automóvel” e em 1901 a primeira “voiturette automóvel”, diz o curador que, durante o trabalho de investigação que levou a cabo e deu origem à exposição, terá encontrado uma lista de clientes a quem foram vendidos os veículos e uma nota com a datação das vendas, que serão os registos mais antigos encontrados até hoje.

Em 1899, cinco anos após a venda da primeira “bycicleta automóvel”, que será o primeiro veículo que se assemelha ao que hoje é uma moto, já uma elite muito reduzida participava em provas de competição, conta. Provas de competição que foram evoluindo para algo mais sério e mais organizado.

Ameaça para os participantes dessas provas era a motorizada que bateu o record Porto-Lisboa, que em Portugal era top de vendas da Leão, Moreira & Tavares - Empreza Automobilista Portugueza, de Coimbra, que abriu portas em 1902. Nas provas que “normalmente” se realizavam num velódromo era vedada a entrada da Werner, por ser considerada “concorrência desleal”, como dá conta um excerto de uma publicação da época.

À entrada da exposição está um exemplar desse veículo de duas rodas, que saiu para o mercado em 1903 e muito se assemelha a uma bicicleta com motor. A que lá está foi reconstruída por um coleccionador que, a partir de um modelo original pertencente ao bisavô, a montou e posteriormente ofereceu ao filho. Curiosamente, diz Emanuel Barbosa, o dono da Werner exposta terá replicado as viagens dos recordes batidos pela marca em solo nacional, mas ainda com a moto do bisavô, inclusivamente os percursos Figueira-Lisboa e Guarda-Coimbra. 

É esta marca o ponto de partida para a primeira motorizada portuguesa, a Tavares Werner. Em 1904, o Dr. Tavares, como era conhecido o proprietário da empresa de Coimbra que distribuía o original francês, começa a fazer os primeiros ensaios para a construção de um motor. Manda produzir grande parte das peças em França, ainda que segundo as suas especificações, e nasce um ano depois, em 1905, a primeira motorizada portuguesa.

É este passo que dá início a um ciclo de produção de várias marcas nacionais representadas na exposição que cobre esse período.

Da Fundador Dakota à Casal Boss, da SIS Sachs Andorinha à Confersil Dina 104, das Macal à  Famel Zundapp GT25, passando pelas Vilar ou pela V5, as mais míticas motorizadas de fabrico nacional são o foco da exposição, que apresenta os motociclos enquanto veículos de lazer e de trabalho essenciais à sobrevivência das populações.

Com início no século XX, a indústria nacional de motociclos passou por vários altos e baixos durante todo o século passado, até quase se extinguir no final dos anos noventa. Inicialmente destinadas às elites, as motorizadas passaram por um processo de democratização, atingindo em Portugal o apogeu entre os anos 60 e 80, com os veículos de baixa de cilindrada, até 50 cc, a cumprirem as necessidades de mobilidade de operários com custos dentro do esperado para uma camada da população que não auferia ordenados muito elevados. Foram aumentando, assim, o número de fabricantes nacionais, alguns com sucesso no mercado internacional.

Esta evolução é acompanhada na exposição com o recurso a material documental, algum dele inédito, incluindo catálogos, cartazes, vídeos e fotografias de época. Estão também expostas  várias marcas internacionais que serviram de inspiração para modelos nacionais como é o caso da Indian Big Chief, de 1925, a Coventry Eagle, de 1934, ou alguns modelos da Harley Davidson, modelos estes mais sofisticados, que depois da Segunda Guerra Mundial foram dando lugar a outros mais económicos, democratizando-se o acesso aos veículos de duas rodas.

Pela Europa com uma Casal

Associada aos veículos de duas rodas a motor esteve sempre a aventura. Ainda que, sobretudo a partir da década de 60 do século passado, as motos fossem usadas como meio de transporte casa/trabalho, sempre houve quem quisesse, à semelhança dos recordes batidos pela Werner, ir mais longe, como aconteceu com Atílio Fevereiro e Eduardo São Simão. Num dos sectores da exposição conta-se a história desta dupla que, em 1973, depois de terminar o curso de Engenharia, escreveu uma carta à Casal pedindo-lhe que lhes emprestassem duas motos com um objectivo: fazerem uma viagem pela Europa. O proprietário da empresa, João Casal, acedeu ao pedido e cedeu à dupla duas motos do modelo K270. Partem do Porto para a aventura. À entrada da auto-estrada são parados pela polícia que lhes pergunta qual a cilindrada do veículo. Respondem que é de 125 centímetros cúbicos. Não podem circular naquela via, dizem-lhes os agentes da autoridade. Voltam para trás, mas inconformados dão meia volta. São mandados parar novamente por outros agentes. Apontam para o modelo da mota e dizem que tem 270 cc. Passam e seguem viagem, percorrendo 15 mil quilómetros em 48 dias. Na Casa do Design estão expostos os mapas usados pelos dois e outros materiais que serviram de suporte à viagem. Há também uma tela com uma curta-metragem que documenta a aventura.

O vintage está na moda

Desde cedo que Emanuel Barbosa, o curador, tem uma ligação com as motorizadas. É ele próprio um coleccionador e entusiasta do revivalismo que tem surgido nos últimos anos destes veículos de fabrico nacional. Ainda que não consiga contabilizar o número de coleccionadores que existem em Portugal, afirma existir um número crescente de pessoas que estão a recuperar clássicos de duas rodas, inclusivamente um público mais novo que não teve contacto com essas motorizadas. As marcas e modelos mais procuradas são a Casal Boss, a Zundapp Famel e a V5, entre outras. Acredita mesmo que esta procura poderá estimular o mercado e dar origem a negócios em torno desta tendência que considera enraizada na nossa cultura. “Em quase todas as famílias há alguém que teve ou tem uma motorizada destas”, afirma. Houve, por isso, quem “por piada” as quisesse começar a recuperar e tenha desenvolvido um certo fascínio por estes modelos clássicos: “É um hobby que pode crescer. Haverá ainda muitas motorizadas esquecidas em muitas garagens”.

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