Levantado do chão

Menos 40% de peso, conseguido através do uso de betão com cortiça, a nova gare de Lisboa é um ponto de chegada na obra de Carrilho da Graça.

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Rita Burmester

“Levantado do Chão”, uma expressão roubada ao título de um romance de José Saramago, é o que chamamos aqui ao Terminal de Cruzeiros, o novo e icónico edifício de João Luís Carrilho da Graça em Lisboa, que tem o privilégio de estar implantado num sítio lindíssimo e é um ponto de chegada na sua obra. Talvez a contaminação literária venha do facto do arquitecto estar igualmente a acabar a sua obra de requalificação do espaço público do Campo das Cebolas, mesmo ao lado do terminal, onde fica a Fundação Saramago na Casa dos Bicos.

Vamos também ao encontro daquilo que Carrilho da Graça defende na entrevista ao Ípsilon: a arquitectura pode atrever-se a convocar a realidade — o rio, o mar, a cidade, as pessoas (nós acrescentamos: a literatura) —, integrando-a na linguagem arquitectónica sem a representar directamente.

“Levantado do chão” não expressa apenas os 40% de peso que conseguiu tirar ao edifício ao usar betão com cortiça, mas também um desejo plástico que mostra um arquitecto com um gesto mais livre, construindo um pavilhão que flutua e trabalha detalhadamente a geometria dos planos quebrados.

Desafiante, “ubíquo”, como nos aponta João Gomes da Silva, o arquitecto paisagista que desenhou o novo parque onde o terminal se insere, o edifício parece ser muitas coisas ao mesmo tempo.

No contexto da obra de Carrilho da Graça — autor de projectos como o Pavilhão do Conhecimento (1998), o Centro de Documentação do Palácio de Belém (2002), a Praça Nova do Castelo de São Jorge (2010), o Teatro de Poitiers (2008) ou o Museu do Oriente (2008) —, o paisagista aponta que o projecto consegue, com muita eficácia, “configurar a sobreposição entre duas cidades, a cidade de Lisboa e a cidade portuária”, propondo um contra anfiteatro ao anfiteatro natural que Alfama desenha. “E parece-me maravilhoso que se possa desenhar um dispositivo de fronteira de uma maneira tão ligeira, tão leve, tão inserida no tecido urbano e na malha portuária.” Além disso, é o retorno do trabalho de arquitectura à tipologia da gare, sublinhando-se o valor cultural destes espaços.

Quanto à sua inserção na cultura arquitectónica da cidade, João Gomes da Silva aponta a grande plasticidade da sua forma, quase uma escultura, sem uma linguagem arquitectónica tradicional: “O edifício comunica formalmente um dispositivo muito diferente, uma casca de caranguejo sem janelas ou portas.” Sem vãos nas fachadas, aberto nos topos, passamos por debaixo da casca para entrar, descobrindo um espaço muito funcional. “Há uma enorme eficácia na linguagem, porque o edifício é legível de um lado, do outro, do rio, de terra. É mais ou menos ubíquo, porque olhamos para ele de vários lados e tem várias formas.”

Se o projecto tentou contrabalançar os efeitos negativos da presença de cruzeiros gigantes em Lisboa — o parque vai aumentar em 3,5 hectares o espaço público em Alfama —, vamos agora ver quão acessível o Porto de Lisboa consegue manter a nova gare. Além de podermos subir à cobertura-miradouro, o que está previsto, era interessante passear sobre a longa passerelle e descobrir como os navios vêem afinal Lisboa.

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