Fazer contas à moda de Genebra

Uma das cidades mais caras do mundo, Genebra ganha um novo presidente municipal a cada ano. Assim é o sistema suíço de rotação anual nos conselhos administrativos.

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DENIS BALIBOUSE/REUTERS

Genebra ensina-nos, entre muitas outras coisas, a fazer contas. Calculamos os privilégios de morar numa cidade multiétnica onde a boa fé, assim como a igualdade de tratamento, regem a cultura local. Mas também fazemos contas ao preço da carne, do aluguer e dos serviços de saúde. Todos sabemos que se trata de uma das cidades mais caras do mundo um estudo divulgado este ano pela Mercer coloca Genebra em sétimo lugar num ranking liderado por Luanda. Mas só quando moramos aqui percebemos como o custo de vida transforma a relação das pessoas com cidade. Para o bem e para o mal.

Situada entre o lago Leman e as montanhas do Salève e do Jura, Genebra é sede de 22 organizações internacionais, entre elas a sede europeia das Nações Unidas. Acolhe ainda cerca de 250 organizações não-governamentais e mais de 150 missões consulares. Muitos dos funcionários internacionais que ali trabalham têm o benefício de não pagarem impostos, o que significa que têm mais rendimento disponível do que os munícipes com salários semelhantes mas que trabalham em empresas ou organismos públicos. O custo de vida local também é influenciado por uma banca pujante e pela indústria de produtos de luxo (foi em Genebra que surgiu a relojoaria suíça). Todos estes elementos tornam esta cidade suíça francófona interessante, intensa e sofisticada mas também dividida.

A mensagem do presidente aos munícipes começa precisamente com uma referência ao aperto nos orçamentos familiares. "Em Genebra, a população tem cada vez mais dificuldade em fechar o mês. É uma constatação: as famílias são obrigadas a viver com dois salários", escreve, numa tradução livre, o maire Rémi Paganino site oficial da cidade de Genebra. Pagani, membro da coligação de esquerda Ensemble à Gauche, refere a necessidade de dois salários porque, na Suíça, é comum que a mãe fique em casa a cuidar dos filhos e do trabalho doméstico. No mesmo texto, Pagani fala ainda de como muitas pessoas penam para encontrar habitação a preços acessíveis e terem acesso a serviços de saúde. É que as franquias são tão elevadas que impedem cerca de 20 por cento da população de ir ao médico excepto em caso de urgência.

Dentro de oito meses, a mensagem de Rémi Pagani será substituída por outra. Isto porque todos os anos Genebra ganha um novo autarca. O cargo de maire é atribuído pelo conselho administrativo da cidade a um dos seus cinco membros numa lógica de rotação anual. No último dia de Maio há sempre um político que se despede para dar lugar, no dia 1 de Junho, a uma outra força política presente no conselho. Este ano, foi a vez de Rémi Pagani assumir, pela terceira vez não consecutiva, os destinos da cidade de Calvino. Em 2018, deverá ser um membro do Partido Socialista assumir o cargo.

Mas esta troca de cadeiras constante funciona? Sim, e de que maneira. Quem o diz é o historiador luso-suíço Flávio Borda d'Água, com quem conversei no tradicional Café Leo, em Rive, para compreender melhor a política local. Borda d'Água explica que a vocação suíça para a busca de consenso depende desta rotatividade. "É o que faz funcionar o sistema, todas as decisões são colegiais e isto encoraja as diferentes forças políticas a negociarem partindo de um denominador comum", explica o historiador, que nasceu em Azambuja há 37 anos e se mudou para a Suíça aos nove. Borda d'Água também é conselheiro municipal, eleito pelo Partido Liberal Radical, em Chêne-Bougeries, município que faz fronteira com a cidade de Genebra, no cantão homónimo.

As crianças são um tema forte na agenda local, conta Borda d'Água, a par com a segurança e o planeamento e ordenamento do território. E, na vida municipal, a questão da infância traduz-se em infantários, escolas, ludotecas, estruturas de apoio parental, segurança na travessia das passadeiras, manutenção de parques e actividades extra-escolares gratuitas ou subvencionadas. Todas estas responsabilidades são assumidas com maior ou menor sucesso, excepto o número de creches disponíveis. Encontrar um lugar num infantário em Genebra é quase um feito heróico.

A partir do terceiro mês de gravidez, as mulheres já podem solicitar uma declaração médica para entrar oficialmente na fila de espera. A inscrição pode ser feita online e tem de ser renovada a cada seis meses. Há quem fique à espera em vão até os filhos completarem quatro anos e, assim, poderem ir para o pré-escolar (a escolaridade é obrigatória dos 4 aos 18 anos). Mas há também quem seja contemplado e só fale bem das creches  públicas. Os critérios de atribuição de lugares têm em conta aspectos como o local de residência, a situação laboral dos pais e as necessidades da criança (por exemplo: meninos com necessidades especiais podem ter prioridade no acesso). Genebra não se opõe à abertura de novas creches uma unidade com capacidade para 52 crianças foi inaugurada em Junho em Pâquis, por exemplo mas, ainda assim, o problema persiste.   

Se o acesso ao infantário faz muitas famílias arrancarem os cabelos, a entrada no ensino público não poderia ser mais tranquila. A minha filha começou a frequentar a escola primária no primeiro dia útil após a nossa mudança de Ferney Voltaire, em França, para o centro de Genebra. Apesar de termos chegado ao bairro de Eaux-Vives no final do ano escolar, o processo de matrícula foi quase imediato, tivemos apenas de mostrar o contrato de aluguer e um comprovativo do seguro de saúde da menina. No dia da matrícula para o ano seguinte, os pais foram recebidos com sorrisos, sumos e bolinhos. O acesso ao serviço de cantina e às actividades nos tempos livres é igualmente fácil (ao contrário dos relatos que ouço e leio vindos de outras cidades suíças, onde há famílias que têm de buscar as crianças à escola na hora do almoço porque o número de lugares no refeitório é limitado). O grande desafio é encontrar onde deixar as crianças às quartas-feiras, quando a maioria das escolas está fechada.

Todos os materiais necessários às aulas, à excepção os objectos de uso pessoal, são fornecidos pelo Cantão de Genebra. Quer isto dizer que todos os meninos têm praticamente os mesmos materiais escolares, sejam os pais funcionários de topo em organizações internacionais ou responsáveis de limpeza. No início do ano escolar, a cidade de Genebra oferece às famílias desfavorecidas um vale de 130 ou 180 francos suíços (o que equivale a cerca de 113 ou 157 euros), dependendo do grau de escolaridade, e uma espécie de "cheque cultura" que dá acesso a espectáculos.

"Há famílias que teriam algumas dificuldades em comprar mochilas, batas e as pantufas na rentrée escolar se não fosse essa ajuda", observa Borda d'Água.

A cidade ainda oferece ateliês gratuitos para crianças após as aulas e um serviço de apoio à parentalidade chamado "Escola de Pais" (por exemplo: famílias que estão a enfrentar um divórcio ou uma crise podem ter sessões de aconselhamento sem marcação). Isto sem falar numa fabulosa rede de 12 ludotecas onde crianças de todas as idades podem socializar, brincar e fazer empréstimos de jogos ou brinquedos.

Todas estas estruturas de apoio à infância fazem a diferença num lugar onde a carne é anunciada aos gramas, como se fosse ouro. As famílias agradecem. Também apreciamos os parques incrivelmente bem cuidados, com roseirais, piscinas infantis e bibliotecas ao ar livre no Verão. Ficamos contentes com as festas e os espectáculos de rua (hoje mesmo os Royal de Luxe trazem os colossos de "Saga de Gigantes" à cidade). A oferta cultural é enorme e, com alguma ginástica, aproveita-se muito gastando pouco. As exposições temporárias têm acesso livre no primeiro domingo de cada mês. Todas as colecções permanentes dos museus municipais são gratuitas, incluindo a do Museu de Voltaire onde, aliás, Flávio Borda d'Água trabalha como curador-adjunto. Agradecemos ainda a elegância arquitectónica da cidade antiga, o civismo no trânsito e as fontes de água potável a cada quarteirão. Estamos gratos pela proximidade do lago e do jacto d'água que se tornou símbolo da cidade, pelo cais onde passeamos, fazemos desporto e pousamos os olhos no horizonte. Porque fazer contas em Genebra também é contar as bênçãos.

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