Proteger os investidores, desproteger todos os outros

Como podemos aceitar os perigos do CETA sem questionar o seu verdadeiro interesse para os cidadãos?

O Acordo Económico e Comercial Global entre o Canadá e a União Europeia, conhecido pela sigla CETA, entrou parcialmente em vigor a 21 de Setembro. No entanto, a discussão pública sobre os impactos deste acordo tem sido praticamente inexistente no nosso país.

Do ponto de vista da proteção do ambiente e da natureza, valores base do bem-estar de todos os cidadãos, torna-se difícil não ser crítico em relação ao CETA. O acordo mostra-se pernicioso em vários aspetos, mas há um deles que o Nobel da Economia Joseph Stiglitz classifica como o “prejudicial e desonesto” detalhe dos acordos de comércio: a criação de um mecanismo especial de proteção aos investidores.

O CETA prevê a criação de um mecanismo chamado tribunal para a resolução de litígios, em que os investidores estrangeiros podem processar um Estado se entenderem que foram logradas as suas expectativas de lucro. Este é um sistema completamente exterior aos sistemas judiciais dos Estados, mas que pode obrigá-los ao pagamento de avultadas multas aos investidores. É precisamente por causa deste instrumento que os parlamentos nacionais estão a ser chamados à votação do CETA, aprovado pelo Parlamento Europeu em fevereiro deste ano, e que o Tribunal de Justiça da UE está avaliar a compatibilidade do acordo com os tratados fundadores da UE.

Os sistemas de proteção aos investidores, existentes em vários acordos de comércio, começam cada vez mais a chamar a atenção da opinião pública pois representam uma agressão direta aos direitos dos cidadãos, especialmente em questões relacionadas com a proteção do ambiente ou da saúde pública. E existem vários exemplos em que Estados foram processados por investidores ao abrigo destes mecanismos. O Ecuador viu em 2012 ser-lhe aplicada uma multa, sensivelmente equivalente ao seu orçamento anual para a saúde, por cancelar um contrato de exploração de petróleo com uma empresa norte-americana. Neste momento, El Salvador enfrenta uma disputa com uma empresa australiana pelo direito à não exploração do seu ouro. A Alemanha está a ser processada por uma empresa sueca de produção de energia, por ter decidido abandonar progressivamente a energia nuclear, tendo já perdido outra disputa, lançada pela mesma empresa, por querer impor a uma central termoelétrica medidas de gestão mais exigentes quanto ao uso de água numa zona ecologicamente sensível.

Quanto à UE, perdeu disputas com empresas norte-americanas e canadianas por ter tentado banir a importação de carne de vaca com uso de hormonas de crescimento não permitidas na UE e por ter proibido a importação de organismos geneticamente modificados que não tinham sido testados de acordo com as normas europeias. Isto acontece porque existe uma grande diferença de abordagem legislativa da UE e de países como o Canadá ou os EUA. A legislação na UE tem como base o princípio da precaução, que vem inscrito nos próprios Tratados. O princípio da precaução permite, por exemplo, banir um produto ou processo se houver suspeita de risco. Este risco é incerto, pode não haver evidência científica, no entanto, o princípio da precaução permite toma-lo como base para decisões políticas. O objetivo é assegurar um elevado grau de proteção ambiental aos cidadãos. No entanto, esta não é a abordagem regulatória no Canadá e EUA, onde apenas os perigos já evidenciados cientificamente podem ser tomados como base regulamentar. O princípio da precaução não está identificado no texto do CETA e assim os investidores podem apelar ao seu não cumprimento.

A legislação ambiental da UE é das mais avançadas a nível mundial e tem contribuído para melhorar a vida dos cidadãos em questões como a água, resíduos ou a conservação da natureza. Infelizmente isto parece continuar a ser visto como um empecilho para o “desenvolvimento”. É difícil crer que alguns ainda vejam a legislação ambiental ou os direitos laborais como barreiras ao desenvolvimento. Este contrassenso foi reconhecido pública e unanimemente pelos 193 países que assumiram os 17 objetivos para um desenvolvimento sustentável em 2030. Entre estes objetivos estão a criação de sistemas de produção e consumo responsáveis, o combate às alterações climáticas e a proteção da biodiversidade. Conseguiremos realmente alcançar os nossos objetivos para 2030 quando outros acordos internacionais vêm tornar o caminho para o desenvolvimento mais sinuoso?

Mesmo que não chegue a haver disputa no âmbito do CETA, a existência deste mecanismo de proteção aos investidores, bem como de outras disposições previstas no CETA, como a cooperação regulamentar, farão com que seja mais difícil aos Estados tomarem decisões para mitigação das emissões de gases com efeito de estufa, com que seja mais difícil legislar de forma a incentivar a sistemas de produção agrícola mais sustentáveis, com menor impacto ambiental, mais saudáveis para os cidadãos e que proporcionem melhor remuneração aos produtores, e diminuirão a ambição legislativa ao nível da proteção do ambiente, diminuição da poluição e dos impactos das atividades económicas.

Mais quais são, afinal, os benefícios do CETA? Crescimento económico, responderão os seus defensores. Mas o relatório encomendado pela Comissão Europeia para avaliar os potenciais impactos do CETA aponta para benefícios máximos, no longo prazo, de 0.03% do PIB da UE! Como podemos aceitar os perigos do CETA sem questionar o seu verdadeiro interesse para os cidadãos?

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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