Dez filmes para não esquecer Veneza

A América de Donald Trump foi um espectáculo decisivo da competição do Festival de Cinema de Veneza. Os grandes filmes, o de Kechiche, o de Schrader, estiveram ao lado. Sobre os prémios, o júri de Annette Bening decide este sábado à noite.

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Mektoub, My Love

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Mektoub, My Love

Abdellatif Kechiche
(concurso)

Polémica pronta a consumir, eis o que se espera para a temporada. É um “macho”, um realizador que “objectifica” as mulheres? O “escândalo” é Kechiche não ter medo de si próprio – isso também fez de Mektoub, My Love o melhor filme da competição. Eis o que nos espera: êxtase, saciedade e saturação, sequências de caça à luz e à carne. Verão de 1994, Amin, fotógrafo, vem da cinzenta Paris até ao Mediterrâneo à procura das cores. Sexo e comida, discoteca e ventura bucólica, convivência de classes, raparigas e rapazes: o último sinal do século XX, segundo o realizador.

 

First Reformed

Paul Schrader
(concurso)

Ethan Hawke, reverendo silencioso, grácil e assustador, veste colete de explosivos. O filme ameaça com o thriller – e toda a gente se lembrou do Taxi Driver, que Schrader escreveu para Scorsese. Mas tudo se passa na intimidade da fé, das palavras, dos diálogos, das dúvidas. A fé é experiência física também. E a harmonia dos corpos e gestos no espaço, a compostura, é das coisas mais vigorosas de First Reformed. Podia ser um thriller, é uma liturgia.

 

Jim & Andy: The Great Beyond. The Story of Jim Carrey & Andy Kaufman with a very special, contractually obligated mention of Tony Clifton

Chris Smith
(fora de concurso)

Quando Jim Carrey desapareceu, na rodagem de Homem na Lua, de Milos Forman, e foi ocupado pelo comediante Andy Kaufman (1949-1984). O cinema é um espaço de euforia psicótica, convida aos desdobramentos. Este é o making of disso, com imagens que tem vinte anos e que ninguém sabia o que fazer com elas. É, sobretudo, um intenso retrato de actor – que diz ter chegado à beatitude do nada, depois de ter descarnado todas as camadas da sua identidade.

 

Angels Wear White

Vivian Qu
(concurso)

Vivian Qu sente-se responsável por um ponto de vista sobre a China contemporânea, território devassado. Coloca-se do lado de Mia, uma adolescente que tem de fazer pela vida numa cidade de praia que se construiu na diluição de fronteiras entre moralidade e imoralidade (como num western em que todos abdicaram de uma parte da sua humanidade). Um filme delicado sobre a humilhação e a brutalidade.

 

The Taste of Rice Flower

Pengfei
(Giornate degli Autori)

Com elegante ironia, o argumentista de Stray Dogs, de Tsai Ming-liang, faz o burlesco aparecer no horizonte e organiza miniaturas e a seguir desequilibra-as. É o bailado do progresso, a sua desordem, num mundo rural e místico. Pengfei não escolhe campos. E isso é que alimenta um sentimento de irremediável. O filme adia sempre a redenção, nunca (se) resolvendo.

 

Nico, 1988

Susanna Nicchiarelli
(Horizontes)

Um fragmento da vida de Christa Päffgen, dita Nico (1938-1988), os últimos concertos, quando andou em tour pela Europa de Leste, com a sua anti-nostalgia perante o “mito” Velvet Underground, o desconforto perante as etiquetas de “musa” ou de femme fatale. E quando tentava recuperar a relação com o filho Ari. Que biopic ainda pode ser um biopic? Uma coisa assim: tal como Nico, que faça resistência aos clichés.

 

Jusqu'a la Garde

Xavier Legrand
(concurso)

Um filme sobre a violência doméstica que dá um salto sobre o “tema”, afasta o filme social, e aterra no thriller. Um filme sobre o medo, o medo das vítimas mas também o medo do agressor (Denis Ménochet interpreta um pai violento, que luta para manter a guarda dos filhos, e que é susceptível de desencadear ternura no espectador). Se a família é um espaço de violência, os planos e as personagens de Jusqu'a la Garde só podem comunicar entre si com a secura dos estilhaços.

 

Our souls at Night

Ritesh Batra
(fora de concurso)

O reencontro entre Jane Fonda e Robert Redford, quarto filme em 50 anos. Uma história de amor entre “maduros”? Sim. Mas Our Souls at Night, em vez de entrar a fundo nas convenções, recua passos e fica a olhar para Jane e Robert, para a forma como andam, os gestos, atento à mecânica e à fragilidade dos corpos. Em surdina, um documento com as últimas imagens juntas daquelas que foram presenças decisivas do cinema e da vida cultural, social e política da América.

 

Piazza Vittorio 

Abel Ferrara
(fora de concurso)

Abel Ferrara é um imigrante: vive em Roma. Utiliza isso como elo para chegar aos imigrantes que tomaram conta de uma das mais icónicas praças da cidade – onde também vivem o actor americano Willem Dafoe e o cineasta italiano Matteo Garrone, que são participantes activos, com os africanos e os asiáticos nos mercados, nas lojas, nas ruas, de uma nova cidade. Ferrara não é jornalista, como diz. É cineasta. O seu olhar está encantado com as possibilidades de caos. Na falta do rigor da análise e da profundidade histórica, sobra o calor da empatia – que já é uma parte da verdade.

 

Ammore e Malavita

Antonio e Marco Manetti
(concurso)

O orgulho e a ironia por Nápoles, pelos seus clichés, a sua violência e misérias, pelo seu sangue, pela sua densidade. Rock, r&b e rap, canções de género azeiteiro: uma representação teatral popular, misto de canto e fala que exibe as emoções do amor, da honra, da traição, a que os irmãos Manetti dão forma de filme musical. Não é La La Land, é melhor do que La La Land. Até os mortos cantam. Depois de Caro Diario, de Moretti, assim se confirma que Flashdance tem importância fundadora para o cinema italiano....