Flashdancing com a Máfia

Musical estrepitoso em Veneza. Não é La La Land, é melhor do que La La Land. Máfia e Nápoles, amor e traição. Até os mortos cantam. Como soa What a Feeling em napolitano?

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Ammore e malavita de Antonio e Marco Manetti dr
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Ammore e malavita dr
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The Third Murder, de Hirokasu Kore-eda dr

“Jennifer Beals, Jennifer Beals…?” Não, não é o Caro Diario (Querido Diário, 1993) com Nanni Moretti “in vespa”, mas mora aqui o What a Feeling (sem a voz de Irene Cara) com letra em idioma napolitano. De novo Flashdance (filme em que a actriz Jennifer Beals é protagonista) revela-se decisivo para o cinema italiano... É Ammore e Malavita (concurso): como uma representação teatral popular, misto de canto e fala que faz exibição das emoções do amor, da honra, da traição, a que os irmãos Antonio e Marco Manetti dão forma de filme musical.

O efeito estrepitoso, assegura-se, não foi exclusivo na imprensa italiana. É verdade que não foi um “caso” como, no ano passado, La La Land, mas é melhor do que La La Land, porque há coisas vivas no filme, mesmo se muita gente morre baleada, esburacada, e se há uma versão atordoada da coreografia dos zombies do Thriller, de Michael Jackson – mortos e com sangue, mas mais vivos do que Ryan Gosling e Emma Stone.

Nápoles e Máfia: começa tudo com um passeio ao infame Scampia, conjunto de edifícios de todos os perigos na cidade (sobre ele escreveu Roberto Saviano em Gomorra, ali filmou Matteo Garrone), viagem em que um grupo de americanos procura a “ultimate tourist experience”, ser assaltado; por isso cantam e dançam. Na verdade, Ammore e Malavita não começa aí, começa antes, com um funeral, depois de uma ardente e comovida panorâmica sobre a cidade. A câmara entra dentro de um caixão e dá voz ao canto de um boss morto — imagine-se se William Holden começasse a cantar na piscina do início de Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses, 1950)... Mas a sequência com os americanos felizes por terem sido assaltados fixa logo em Ammore e Malavita o orgulho e a ironia dos irmãos Manetti por um património, Nápoles, pelos seus clichés, a sua violência e misérias, pelo seu sangue, pela sua densidade (“uma capital da cultura”). Todo o filme acredita, é o triunfo de Ammore e Malavita: acredita no rock, no r&b e no rap, nas canções, de género azeiteiro, que não são parêntesis na acção mas outras formas de criar narrativa, como comentário, flaskback ou progressão, são formas de intensificar a realidade em vez de fugir dela; acredita num happy end em Honolulu, num salto a Nova Iorque, cidade que recebeu, através de Ellis Island, a “malavita” e o espectáculo popular, acredita nos filmes de 007, acredita em heróis e heroínas à maneira de Grease ou do blaxploitation dos 70s. Acredita nas câmaras lentas e acredita em Nápoles. E tem um grupo de actores que faz generosa resistência às resistências.

Condição oposta é a de outro italiano em concurso, Una famiglia, de Sebastiano Riso. É que embora não seja justo duvidar das intenções do realizador – fazer o ponto da situação e, mais forte até, intervir no debate sobre a adopção em Itália e sobre o conceito de “família”  —, envolve a história de um casal que vende os seus filhos (Micaela Ramazzotti e Patrick Bruel) numa densidade masoquista com a qual não sabe evitar a caricatura e aí suspende-se a crença.

The Third Murder, de Hirokasu Kore-eda (concurso), pode ser visto como uma homenagem ao Rashomon (1950), de Kurosawa, filme em que um acontecimento tinha versões, verdades, alternativas. Mas é uma homenagem com intenção: demonstrar que o sistema judicial japonês cria nos seus mecanismos um movimento contrário à descoberta da verdade. “História de tribunal”, em que um grupo de advogados defende um criminoso que confessou o seu crime, tem momentos de brilhantismo formal em que o ocaso da verdade, a sua impossibilidade, é uma delicada fantasmagoria. Mas é quase sempre, também, um microclima inundado em música.

Intenções tem Sweet Country, de Warwick Thornton. A personagem de Sam Neil, às tantas, explicita-as quando, depois de um episódio de injustiça e racismo cometido sobre a personagem de aborígene, pergunta: quando é que este país vai acabar de ser assim? Era na Austrália no tempo dos cowboys, mas diz o realizador que o “problema aborígene” continua na Austrália de hoje. Com os flashblacks e flashforwards que quebram o presente do filme, Warwick Thornton suspende a história numa memória sem “agora”, quer fazer dela fluxo, património, transmissão. Há intenções, sim, é claro em cada enquadramento o desacordo e o confronto com a História, mas fora isso não sobra filme.

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