Daesh na TV: há um timing certo para a ficção sobre terrorismo?

O Estado, mini-série sobre quatro jovens britânicos radicalizados, gerou polémica no Reino Unido, onde se estreou três dias depois dos atentados de Barcelona. Chega a Portugal a 17 de Setembro.

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Quatro jovens britânicos saem do país e rumam à Síria, onde vão integrar o Daesh. O Estado, mini-série que se estreou na semana passada no Reino Unido e chega a Portugal a 17 e 18 de Setembro, é uma história de radicalização. Um dos actores principais, Sam Otto, sabia que iria tocar "num ponto sensível. Os detractores chamam-lhe “puro veneno”, os autores frisam que serve para entender o que leva os europeus a radicalizarem-se. Há um timing certo para tratar o terrorismo na ficção (e uma maneira certa de o fazer)?

“Uma série sobre terrorismo não é terrorismo”, defende Filipe Homem Fonseca, argumentista português que ainda não viu O Estado, escrita e realizada por Peter Kosminsky (realizador da mini-série Wolf Hall ou de filmes sobre os capacetes azuis na Bósnia e intervenções militares no Médio Oriente). “O Daesh causou muita dor em todo o mundo mas se não entendermos por que é que (...) homens e mulheres nascidos em democracia optam por entregar as suas vidas em seu nome, como vamos combater o seu credo niilista?”, perguntou o autor britânico no início de Agosto, aquando da apresentação da mini-série de quatro episódios.

Nessa altura, Kosminsky já adivinhava que O Estado, cuja preparação durou 18 meses e incluiu entrevistas com vários arrependidos do Daesh, gerasse tensão: “Seria muito mais fácil fazer episódios de A Guerra dos Tronos. Mas acredito que a televisão é um meio imensamente poderoso e que deve ser usado para pôr a sociedade frente ao espelho. E a sociedade está num sítio bastante negro neste momento”, disse, citado pela Variety.

O Estado centra-se em dois homens e duas mulheres muçulmanos nascidos no Reino Unido, uma dos quais é uma médica com um filho pequeno, mas alarga-se a outros europeus que se juntam ao grupo terrorista. Uma co-produção Channel 4 e National Geographic (é neste último canal que será exibida em Portugal), estreou-se no Reino Unido três dias depois dos atentados de Barcelona e ainda sob o efeito do duplo ataque na Ponte de Londres e no Borough Market em Junho. Bethany Haines, filha da vítima do Daesh David Haines, um escocês raptado e decapitado há três anos, pediu no Mail on Sunday que a estreia fosse adiada em atenção aos familiares das vítimas de Barcelona. O Channel 4, que recebeu vários pedidos similares, avançou com a transmissão.

Mark Lawson, crítico do Guardian, defende que “Kosminsky cumpre uma das maiores obrigações da sociedade democrática – explorar a ideologia dos seus inimigos” e elogia a forma como a série opta por não encobrir com empatia a crueldade do Daesh. No mesmo jornal, Rachel Shabi, especialista em Médio Oriente, sublinha que “O Estado faz bem em humanizar os recrutas do Daesh": "Precisamos de perceber." Já o tablóide Daily Mail classifica a série que “glorifica o Daesh” como “puro veneno", comparando-a a "um filme de recrutamento nazi dos anos 1930”. Também os espectadores se dividiram quanto à pertinência de O Estado.

O Daesh e o terrorismo não são personagens novas na ficção – nem no documentário. Se depois do 11 de Setembro de 2001 foi preciso esperar cinco anos até começarem a surgir projectos de maior visibilidade no cinema, nos últimos tempos os grupos terroristas e o Daesh em particular estão em muitas histórias que a televisão nos conta – desde a quinta temporada de Segurança Nacional, que nasceu na era Al-Qaeda e pôs a organização de Bin Laden nos seus arcos narrativos, até à mais recente temporada de Prison Break, passando por vários procedurals como Investigação Criminal). Na RTP2, a série francesa Agência Clandestina vê um dos seus protagonistas sequestrado pelo Daesh.

Por seu turno, o grupo usa o canto de sereia de Hollywood e as suas técnicas para se propagandear, como mostrou em Março o documentário Terror Studios; o debate no Reino Unido já tinha ocorrido este ano em torno de Isis: The Origins of Violence, do historiador Tom Holland, também do Channel 4. E o próprio mundo árabe, através do canal por satélite MBC, programou no passado mês do Ramadão a ambiciosa série Black Crows – cujos produtores o auto-proclamado Estado Islâmico logo ameaçou. Por cá, uma das novas séries da RTP, Aqui Tão Longe, de Filipe Homem Fonseca, tinha também o terrorismo e o medo como pano de fundo.

Questionado pelo PÚBLICO sobre se existem timings ideais para estes projectos, o argumentista admite que “esse tipo de debate é inevitável”, mas argumenta que “a ficção tem sempre muito a ganhar quando parte de uma realidade actual”: “As sensibilidades do público não deverão ser um empecilho à criação ficcional. Vivemos num tempo em que se tenta condicionar a expressão artística e/ou produtos de entretenimento”, lamenta, citando as críticas à projectada série Confederate, ficção alternativa em que os estados do Sul dos EUA se separaram do Norte e mantêm a escravatura legal. Apenas "a garantia de um bom produto final” deve condicionar a ficção, defende: “Os critérios devem ser dramatúrgicos."

Desde os primeiros minutos, O Estado despeja o espectador, juntamente com os jovens idealistas, na dura realidade do Daesh. “O que tentamos dizer é: fiquem connosco enquanto tentamos perceber o que se está a passar”, explicou Kosminsky aos jornalistas. As primeiras críticas vieram logo após o primeiro episódio. “Já há muitas pessoas a irem combater com o Daesh”, alertou o coronel Richard Kemp, perito em segurança citado pelo Mail, considerando lamentável que a televisão "encoraje mais a fazê-lo”. Mas Peter Kosminsky veio explicar que há uma “desilusão” à espera das personagens e que a série poderá, pelo contrário, ter "um impacto dissuasor”.

Charlie Winter, investigador do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização no King’s College de Londres, elogia a série, que considera ter sido “muito bem pesquisada” – e sublinha, citado pelo Guardian, que “é absolutamente necessário que percebamos que estas são pessoas que fizeram coisas más mas que ainda assim são pessoas": Se provoca uma conversa – uma conversa menos emotiva e com mais nuances –, então acho que é uma coisa boa”, resume. De resto, cada caso é um caso, considera Filipe Homem Fonseca. Uma série não é terrorismo em sim desde que não faça a apologia do terrorismo, e a ficção pode servir como um espelho para nos vermos melhor ou mesmo, diz o argumentista português, como “uma válvula de escape para o medo, o pior inimigo”.

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