O mito da fuga consentida e o triunfo escondido na clavícula de Zeferino

Vencedor da Volta de 1981 garante que já não era nenhum desconhecido nessa edição e refuta a ideia ?de uma vitória caída do céu. “Quando me apanhava sozinho, era complicado acompanhar-me”, recorda.

Foto
DR

O nome de Manuel Zeferino encerra um mito que os anos foram ajudando a sublimar, mas que a memória de quem viveu de perto a Volta a Portugal de 1981 pode desmontar sem grande esforço. Para o então jovem da Póvoa de Varzim que espantou o país com a fuga mais improvável logo na 1.ª etapa, a dois dias de festejar o 21.º aniversário, a história é muito simples. “Essa corrida transformou por completo a minha vida”, atesta o vencedor da edição de há 36 anos, ciente de que passou de anónimo a referência com uma vitória “à Alves Barbosa”, o primeiro a conquistar a Volta liderando do início ao fim, proeza que só Joaquim Agostinho igualara.

“Infelizmente, nunca mais repeti. Ainda consegui um segundo e um terceiro lugares. Andei sempre a rondar o pódio, mas acabei por abandonar o ciclismo de forma precoce”, reconhece Zeferino, que abdicou da adrenalina das corridas aos 32 anos, quando a desmotivação já não lhe permitia alimentar a paixão dos verdadeiros campeões.

“A morte do meu irmão, um ano depois da minha vitória na Volta, afectou-me muito. Uma queda na Volta ao Algarve, no primeiro ano de profissional, deixou marcas muito profundas, tanto a mim como a toda a minha família. Foi um daqueles momentos fatídicos que nos deixam sem vontade de continuar. E aos poucos fui acusando cada vez mais a desmotivação, até chegar ao ponto de não ter sequer vontade de treinar”, lembra o poveiro, que ainda hoje continua à procura de uma explicação para tamanha tragédia.

Recuperar as memórias daqueles tempos abre alçapões que nem sempre é possível evitar, mesmo para alguém que, ao contrário da ideia que se foi perpetuando, garante que não ganhou por causa do factor-surpresa ou apenas porque os adversários decidiram facilitar, permitindo-lhe abrir um fosso difícil de reduzir até Gouveia, onde Zeferino acabaria por ser coroado rei da Volta.

“O Belmiro Silva venceu o prólogo, em Évora, e começou de amarelo. Como éramos da mesma equipa, não competia ao FC Porto anular a própria fuga, mesmo que o líder estivesse em perigo. Com o tempo ganho e como sabiam do que era capaz, havia boas probabilidades de garantir a vitória final logo nesse dia. Quando me apanhava sozinho, era complicado acompanhar-me. E ninguém pode dizer que eu era um ilustre desconhecido, pois já tinha sido oitavo no ano anterior”, defende, admitindo uma atenuante para a concorrência. “Apareci na Volta depois de ter fracturado a clavícula cinco semanas antes do início da prova. Isso pode ter pesado, pois é natural que julgassem que não estava no meu melhor. Mas julgo que todos sabiam do meu valor, apesar de nunca ter vencido nenhuma prova… apenas uma etapa ou outra”, sublinha, tentando desconstruir a teoria da vitória-surpresa.

De resto, Zeferino repesca o ritmo de uma etapa de 204km que ajudou a fazer uma ampla triagem. “Foi de tal modo elevado que 25 ciclistas acabaram mesmo eliminados, por concluírem a tirada fora do controlo. O Alfredo Gouveia, da Coelima, era um dos candidatos e acabou logo ali a Volta”, riposta, descrevendo com maior exactidão a realidade vivida. “No fim da etapa acabei por conquistar uns sete minutos ao José Santos e ao António Fernandes e quase 12,5 ao pelotão. A partir daí, ciente do meu valor e consistência, o FC Porto assumiu que passaria a assumir a posição de chefe de fila”.

Os termos estavam invertidos e o novo enquadramento não levantou ondas na equipa. “Nem havia muito para discutir acerca desse facto. Estava habituado a trabalhar para o Marco Chagas, para o Belmiro Silva e para o Fernando Fernandes e agora tinha três ‘aguadeiros’ de luxo”, destaca com um sorriso de Évora ao Algarve, próprio de quem subverte as regras e passa a ter uma verdadeira guarda pretoriana às ordens.

“Mas não se pense que essa Volta se resumiu à fuga da 1.ª etapa e à gestão da vantagem: depois venci o primeiro contra-relógio e fui segundo no seguinte, conquistando uma vantagem mais confortável”, resume, encerrando a discussão da mesma forma que decidiu abdicar do ciclismo uns anos depois de trocar a bicicleta pelo carro de director desportivo. Uma realidade nova que, apesar de lhe ter multiplicado os êxitos, acabou por abandonar, desiludido com um escândalo de doping em que enfrentou a mais dura etapa da carreira, alcançando mais tarde a absolvição na justiça.     

Sugerir correcção
Comentar