Manuel Cunha, entre a queda na banheira e a queda do rival

Vencedor da edição de 1987 prefere seguir a Volta a Portugal à distância, para não incomodar os amigos do pelotão. Por trás desse triunfo longínquo está uma história rocambolesca, vivida na Sicasal.

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Nelson Garrido

Manuel Cunha, vencedor da Volta a Portugal de 1987, não perdeu o bichinho do ciclismo, que continua a acompanhar com máxima atenção, embora cada vez mais à distância, em frente à televisão da confeitaria Roda d’Ouro, negócio que explora em Pedroso, Gaia, onde por estes dias terá mais uma ocasião de recordar a vitória de há 30 anos.

Para reviver esse triunfo, volta ainda mais atrás para um enquadramento geral. “Com o segundo lugar do Benedito Ferreira, em 1986, a 15 segundos do Marco Chagas, a Sicasal programou a época seguinte totalmente focada na Volta a Portugal. Na altura era normal as provas durarem muitos dias, o que obrigava a prescindir de algumas corridas”, relata, em jeito de partida simbólica de uma conversa salpicada de humor.

“O Leonel Miranda perguntou-me se queria ir ao Troféu Joaquim Agostinho ou à Volta ao Minho, para depois aparecer em força na Volta. Combinámos logo que não iria a Torres Vedras. Pensei que seria melhor solução, podia rolar uma semana antes da Volta, altura em que se corria o ‘Minho’”, explica, embora pudesse ter decidido ao contrário.

O problema foi quando o treinador divulgou a lista e os responsáveis da Sicasal perceberam que não ia participar numa prova que era praticamente na “casa” da equipa. “Para evitar uma polémica, o treinador — que era conhecido por saber dar a volta aos ciclistas — chamou-me e explicou-me o que estava a acontecer. Conversámos e decidimos que, para acalmar os ânimos, alinharia… mas só no primeiro dia. Melhor ainda, ia cumprir o prólogo como se estivesse a lutar pela vitória”, revela, pronto para executar um plano quase tão arriscado como uma descida da Torre para o Fundão.

“Acabei por levar as indicações à letra e entrei a ‘matar’, conquistando logo a amarela. A partir dali parecia que não havia mais volta a dar. Mas o treinador manteve a posição e fez questão de cumprir o combinado, garantindo-me que só tinha uma palavra e que a cumpriria, nem que isso significasse o adeus à Sicasal.”

Apesar de não ver uma saída para aquela situação, Manuel Cunha percebeu que também não havia forma de fugir ao programado. “Foi então que o treinador me pôs a par do plano: no apartamento tinha que simular uma queda na banheira e ele tratava do resto. Depois do duche lá veio o massagista: pôs-me uma pomada e ligou-me o pé. E a verdade é que no dia seguinte não alinhei. Meti-me no carro e parti, mas imagino a confusão que deixei para trás.”

Já sem o pé ligado e depois de correr a Volta ao Minho, Manuel Cunha surgia pronto a fazer a parte dele. Chegou à Volta a Portugal “em grande forma” e confirmou o bom momento no primeiro contra-relógio, em Águeda. Mas havia ainda um longo e penoso caminho pela frente — “como um circuito duríssimo em Sintra que nem tempo dava para fazer a digestão e provocou um protesto dos ciclistas” — e o corredor nortenho perderia circunstancialmente a amarela para Cayn Theakston, britânico que conquistaria a prova no ano seguinte.

“Só sei que quando recuperei a camisola houve muitas críticas: houve uma queda e como era normal ninguém atacou. Ficámos à espera do camisola amarela. Esperámos, esperámos e nada, ninguém aparecia. E como nunca mais vinha o grupo do Theakston, decidimos partir. No fim, recuperei mesmo a amarela”, explica, sem saber o que responder às acusações. “As pessoas diziam que ganhei porque o inglês caiu, mas ainda tivemos que passar a Senhora da Graça e o contra-relógio do Marco de Canaveses”, refere, deixando entender que o rival teve muitas oportunidades para discutir a vitória.

Quando olha para o actual panorama do ciclismo, Manuel Cunha vê diferenças acentuadas. “As provas são todas mais curtas, basta olhar para Volta a Portugal, com onze dias, o que na altura correspondia a um Prémio O Jogo. Muitos ciclistas têm mesmo que ir disputar corridas ao estrangeiro para treinarem a um nível mais exigente”, sublinha, à espera de mais uma etapa perto de casa para poder matar o bichinho. Sempre que pode, o antigo campeão vai rever os amigos, embora acabe por voltar a casa cada vez com menos vontade de incomodar o pelotão.

“Quando a Volta passa perto tento ir ver, mas volto sempre com um certo amargo de boca. Acabo por sentir que os estou a empatar. Se vou antes da corrida, está tudo concentrado a preparar-se; se apareço no fim também não é fácil, porque é preciso descansar para recuperar. No fundo não há muito tempo para socializar e lá volto eu a casa para ver a televisão, que acaba por ser a melhor maneira de seguir as provas sem incomodar ninguém.”     

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