Ó Raquel, eu também não tenho feitio para emigrante e, no entanto, sou

Infelizmente, ou felizmente, não conheço ninguém com feitio, ou jeito, para emigrante, desde logo a começar pelos 600 mil portugueses saídos do país ao longo dos últimos dez anos

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Diogo Tavares/Unsplash

Olá, Raquel, e obrigada pelo teu texto, pelas tuas palavras e pela tua falta de feitio para emigrante. Na verdade, Raquel, tenho algo a confessar-te, aqui entre os dois que ninguém nos ouve: eu também não tenho feitio para emigrante e, no entanto, sou.

Infelizmente, ou felizmente, não conheço ninguém com feitio, ou jeito, para emigrante, desde logo a começar pelos 600 mil portugueses saídos do país ao longo dos últimos dez anos e nos quais me incluo como parte dos mais de 30 milhões de lusos e luso-descendentes espalhados por todo o mundo.

Porque, Raquel, ninguém sai da nossa casa, da nossa rua e da nossa terra por querer quando querer ninguém quer e no fim somos todos iguais, parte de uma família, de um grupo de amigos e um punhado de sonhos, apenas culpados de nascer e viver num país onde a necessidade, essa sim, nos obriga a sair, a andar, a correr a fugir para bem longe e daqui para fora, para longe da fome e desesperança, da falta de ar que nos cansa num sufoco onde não mora o mérito mas a cunha e onde o estatuto, os desafios, a emancipação, as gentes, os euros, os francos, as libras e o mundo estão sempre longe demais para quem, no fim, procura, apenas e somente, manter a alma agarrada ao corpo.

Isto se tivermos a sorte, lá fora, de ter um estatuto, contrariar a depressão, enfrentar o desconhecido, vencer desafios, conquistar a emancipação, gentes, euros, francos, libras e mundo, mais mundo quando, Raquel, lá fora somos carne para canhão e fazemos quanto nos mandam, 12 horas por dia e 7 dias por semana, sem glamour, sem estatuto, sem prestígio, sem que disso nos orgulhemos, mas ao menos não passamos fome e o futuro, o futuro, talvez um dia se lembre de nós.

Saudade? Sempre, mas não é por isso que se morre e voltar só para a reforma. Porque, Raquel, o melhor é falares por ti, a saudade não é uma coisa tão nossa quando saudade não tenho de um passado e de um chão sem espaço para estes pés, sem sol para este homem, incapaz de compreender a dor de cotovelo de quem se esconde por detrás de uma mesa portuguesa preenchida a almoços de família e jantares de amigos por entre cafés, caldos-verdes e esplanadas, porque eu também sou dos meus mas não lhes devo nada, e antes morto do que viver à custa dos outros, calma e tranquilamente no seio dos meus à espera que o céu nos caia, inevitavelmente, em cima desta cabeça enfiada na areia.

Sabes, Raquel, no fim consegui ser feliz lá fora, mesmo a trabalhar doze horas por dia, sete dias por semana, já viajei por metade do mundo e cansei-me de voar low cost, faço poucas contas e quanto a suar só de bicicleta. E tudo isto sem deixar de gostar menos da família, a mesma que sabe tão bem o porquê de ter de sair sem uma data para voltar. Porque crescer é preciso e o conforto também existe por estas paragens, do lado de lá do espelho, na ponta da asa de um avião.

Por tudo isto, Raquel, obrigada pelas tuas palavras, não inventes desculpas porque ninguém foi feito para sair, nem tu, nem eu, e aproveita a família enquanto podes que eu faço o mesmo a cada regresso. Contudo, desengana-te, nenhum de nós voltará, com ou sem família, como emigrantes somos mesmo melhor do que os que ficaram, aprendemos mais, fazemos a diferença e Portugal não nos merece nem compreende esta liberdade de quem não tem de prestar contas a ninguém.

Vem antes tu visitar-nos, estaremos algures no Mediterrâneo entre o sol e a reforma, sem qualquer memória da vida que fomos, perdida para todo o sempre na distância dos anos.

P.S.: À hora destas palavras estamos a caminho de Portugal para mais um merecido período de férias. Aterramos no aeroporto às 18 horas para quem nos quiser saudar, depois de mais um ano de trabalho no mundo real, onde tudo acontece. Portugal? Só para passar férias.

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