O Milhões tem tudo. Tem skate, matraquilhos e porno. Só já não tem o Xispes.

Entre música, manobras de skate, campeonatos de matraquilhos, mergulhos na piscina e passeios pelas ruas de Barcelos o dia 2 do festival foi marcado pela maior adesão de público deste ano

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Paulo Pimenta

Estão cerca de duas dezenas de skaters na Praça de Pontevedra, num início de tarde de calor em Barcelos, no dia 2 do Milhões de Festa. Das colunas de uma banca improvisada, onde foi montado um sistema de som, sai o refrão de Blow Me (Like the Wind), dos Turbonegro. No centro da praça há um curb, um monobloco de metal com as arestas revestidas de parafina que serve de suporte para as manobras.

Ouve-se o barulho das rodas a rolar no piso de cimento e, de longe a longe, o estrondo de corpos a bater no betão na sequência de manobras falhadas. Tentativa, erro, tenta-se até acertar com a manobra na perfeição. Chega mais um grupo que traz dois corrimões de metal, ou flat bars, para juntar ao skatepark montado na hora. Que comece o Milhões de Manobras que há gente à espera para ver e participar.

O pódio só chega para três. Quem lá chegar tem entrada diária para o festival que, neste sábado, tem marcado o regresso dos suecos Graveyard a um dos palcos. Seguramente, não é Francisco Fonseca que vai ganhar um dos bilhetes. Sentado na relva que contorna a praça, com ar de desapontamento, do lado direito tem empilhadas duas metades de uma tábua de skate. “Nem deu para aquecer”, diz. Na segunda tentativa para concretizar a mesma manobra a tábua estala no chão. Adeus skate, agora são dois pedaços de contraplacado. Não está chateado por não ganhar o bilhete. Já o tinha para aquele dia. Queria mesmo era poder participar. É de Penafiel, onde começou “sozinho” a praticar a modalidade, mas vem do Porto, onde estuda em Belas Artes e onde trilha as ruas de skate. Praça de eleição para treinar as manobras é a dos Leões.

No Porto, companhia para skatar não falta, em Penafiel “não conhecia muita gente” que o fizesse. A Barcelos vai muitas vezes para aproveitar as praças da cidade. Desta vez, fica só a bater palmas. Já há alguns anos a rolar está Nuno Gaia, da Kate Skateshop, que co-organiza a iniciativa em conjunto com o colectivo barcelense PAS12. São 25 anos de skate, a coleccionar alguns troféus e finais de competições a nível nacional. Aos 39 anos já deixou a competição de lado. Ali, está para escolher as melhores manobras. É uma praça que conhece bem. “Barcelos tem uma configuração propícia à pratica do skate. Tem muitas praças com estruturas arquitectónicas favoráveis. Como eu há muita gente do Porto que cá vem”, diz. Esta cidade diz ter cada vez mais skaters, embora, tendo em conta “as condições” que existem, acredita que poderia ter ainda mais.

Em Portugal, a modalidade diz ter evoluído desde que começou a praticar. Há mais gente e uma maior facilidade de acesso aos meios: “Quando comecei tinha que comprar revistas da especialidade que chegavam cá com dois meses de atraso. Agora há o Youtube para aprender manobras e um filme novo a sair quase todos os dias”.

O Milhões é uma novela porno brejeira

Pouco tempo passava do final do concerto do trio de Chicago, Bitchin Bajas, que tocou no Castelo (o local foi anunciado pela organização no próprio dia que, diariamente, optou por marcar um concerto num local fora do recinto), e preparava-se no interior a abertura da banca da Necromancia Editorial, dedicada à Banda Desenhada mais obscura.

Underground do underground. Lá, está Xavier Almeida, autor da Novela Pornográfica (e Brejeira). É uma compilação de momentos do festival imaginados pelo autor, desde 2012, altura em que surge o primeiro volume. Agora existem cinco e prepara-se mais uma com a edição deste ano. A linguagem é explícita e as imagens são gráficas quanto baste. Escreve “como se fala”, sobretudo mais a norte, e desenha de acordo com o caminho que a imaginação percorre.

Xavier é de Ovar, mas vive em Lisboa: “Cá em cima, as pessoas estão mais habituadas a este tipo de linguagem”. Não é intenção seguir uma via mais sexista. Já se questionou sobre a possibilidade de estar a pisar esse limite. Chegou à conclusão que quem lê a novela gráfica percebe a intenção. Deu-lhe mais confiança o trabalho de um epigramatista romano do século I, Marcial que, na altura, poucos tabus tinha relativamente à linguagem usada. “Se naquela altura fazia isso sem problemas, em 2017 parece-me que estamos mais preparados para isso”. Os trabalhos estão editados em papel e à venda no festival. Têm uma tiragem de cerca de 20 exemplares. Este trabalho em particular descreve-o como “uma novela gráfica em ácido”.

Na banca da Necromancia editorial está também disponível, com distribuição gratuita, uma BD criada para e sobre a edição deste ano do festival, a Visita de Estudo de Estudo ao Milhões 2017: Histórias dos alunos da C+S de Corvos (Anais). Nome que fica no ouvido, dizemos a Marcos Farrajota, um dos autores e responsável pela Associação Chili com Carne. “É uma piada privada”, explica.

Na BD participam ainda Rudolfo, Gonçalo Duarte, Tiago da Bernarda, Ricardo Martins, Ana Caspão, João Silvestre, Joaquim Almeida, Rui Moura e também Xavier Almeida.

Matraquilhos é modalidade para se levar a sério

Enquanto uma parte do público chega ao recinto depois de uma tarde na piscina, no dia, até à altura, em que se registou a maior adesão, juntam-se no “estádio” montado entre o palco Mil

hões e o Lovers os primeiros adeptos fervorosos para assistir à grande final nacional do campeonato de matraquilhos. “Boa sorte eu te desejo de todo o coração”, é o refrão de encorajamento aos “atletas” que se ouve antes do apito inicial. Anunciam-se as equipas e avisa-se que quem não aparecer até às 20h10 é eliminado por falta de comparência. Há bancadas e há público. Entram os protagonistas, as equipas, os adversários cumprimentam-se, o árbitro apita e começa o jogo. O organizador do torneio, João Parra, diz que isto é coisa para ser levada a sério.

Todos os anos, na sede Praça da Alegria, junto às Belas Artes do Porto, no último fim-de-semana de Maio, cerca de 35 equipas “de todo lado” jogam entre si até ser achada a dupla vencedora. Nos últimos quatro anos as faixas de campeão têm sido entregues sempre à mesma equipa. “É uma dupla de Famalicão. Rapam tudo”, diz. Para casa levam um troféu de cerâmica feito por alunos de Belas Artes.

Este ano, a convite do festival, a competição, além do Porto, alargou-se a Lisboa e Barcelos. Os melhores das três cidades mediram forças na final. João diz que ninguém se chateia, mas leva-se o torneio a sério. Tão a sério que todos os anos a mesa de matraquilhos da Praça da Alegria é mudada: “Temos que garantir que o terreno está nas melhores condições. Por altura do torneio compra-se mesa nova”.

Não há Xispes, continua a haver Xano

Por volta das 22h há quem ainda tente encontrar um espaço para jantar. Na Rua da Palha, há outro festival. Na mesa de uma esplanada improvisa-se uma batucada com pandeireta e anima-se a rua. É ali o centro nevrálgico do “milhões de rua”.

O bar do Xano é um espaço com mais de uma década e o espaço contiguo, restaurante da família, ainda mais antigo é. Com o encerramento do Xispes é para lá que, muitos dos que se deslocavam a Barcelinhos para comer os famosos panados, se deslocam agora e se juntam aos muitos que já lá paravam por altura do festival. Há quem pergunte o que é feito do Xispes. Está encerrado.

Sérgio Pires, numa das mesas, recebe a notícia em primeira mão. “Não pode ser”, exclama. Há quem brinque e fale numa petição para reabrir o café. Tem o apoio de Sérgio, que recorda uma madrugada em que o Xispes tratou de lhe saciar o apetite: “Cheguei a vir de Viana do Castelo de propósito para comer um rancho às cinco da manhã”. Hoje, não há rancho, não há panados e não há Xispes.

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