O que eles disseram quando foram ao Parlamento para falar de assédio no trabalho

Do juiz conselheiro Júlio Gomes ao subinspector do trabalho Manuel Roxo passando pelos representantes da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, eis três diferentes formas de olhar o problema do assédio moral e sexual no local de trabalho.

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Rui Gaudêncio

A inversão do ónus da prova, que transfere para a pessoa acusada da prática de assédio a responsabilidade de provar que não o fez, foi das questões mais fracturantes entre os partidos que apresentaram projectos de lei sobre o assédio no local de trabalho. Deputados do PS, PCP, BE e PAN ouviram, entre o início de Abril e final de Junho, a opinião de sociólogos, juízes, representantes dos sindicatos, das entidades patronais e da Autoridade para as Condições do Trabalho, antes de chegarem a consenso em pontos comuns na proposta de alteração do enquadramento legal do problema. Eis uma síntese de algumas destas audições no Parlamento.

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A inversão do ónus da prova, que transfere para a pessoa acusada da prática de assédio a responsabilidade de provar que não o fez, foi das questões mais fracturantes entre os partidos que apresentaram projectos de lei sobre o assédio no local de trabalho. Deputados do PS, PCP, BE e PAN ouviram, entre o início de Abril e final de Junho, a opinião de sociólogos, juízes, representantes dos sindicatos, das entidades patronais e da Autoridade para as Condições do Trabalho, antes de chegarem a consenso em pontos comuns na proposta de alteração do enquadramento legal do problema. Eis uma síntese de algumas destas audições no Parlamento.

Júlio Gomes, juiz conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça

“Não vale a pena mexer no Código do Trabalho se é só para lhe fazer cócegas”

Com 25 anos de experiência em direito do trabalho, o juiz conselheiro Júlio Gomes descartou a eficácia de medidas como a adopção de códigos de boa conduta nas empresas, prevista no projecto do Partido Socialista, por considerar que tais instrumentos não passarão de "letra morta”. “Basta pensar nas milhares de micro-empresas que existem em Portugal”, alertou, sublinhando não estar, de resto, prevista qualquer consequência para o incumprimento de tal obrigação. “Não vale a pena mexer no Código do Trabalho se é só para lhe fazer cócegas”, considerou.

Questionou ainda as referências — transversais aos projectos dos diferentes partidos — ao assédio no local de trabalho, por existirem casos de assédio que ocorrem entre colegas mas fora do local de trabalho. O juiz apontou mesmo um “célebre” caso ocorrido em Vila Nova de Gaia, em que o trabalhador assediava uma colega através de stalking, perseguindo-a “sistematicamente quando ela saía do local de trabalho e se dirigia ao seu domicílio, embora no local de trabalho propriamente dito não houvesse comportamentos assediantes”.

Outra suposição presente nas propostas — a de que o assédio ocorre entre colegas de trabalhos — levou Júlio Gomes a notar que “há cada vez mais casos de assédio proveniente de terceiros à empresa (clientes, fornecedores…)” e que “há cada vez mais trabalhadores a partilhar espaços com trabalhadores de outras empresas, como os temporários e os subcontratados”, pelo que “é preciso estabelecer a responsabilidade do empregador pelo ambiente de trabalho, independentemente de quem seja o autor do assédio”.  

Considerando “muito feliz” a proposta de impedir quaisquer sanções disciplinares sobre quem se queixa de assédio até ao trânsito em julgado da decisão, Júlio Gomes sugeriu que, uma vez transitada em julgado a sentença que determine a absolvição do acusado, o queixoso possa ser sancionado, nos casos em que tenha ficado provado que houve intenção dolosa com recurso a falsos testemunhos.

A inversão do ónus da prova, que atira para o empregador a responsabilidade de provar que não houve intenção nem efeito assediante, foi igualmente aplaudida pelo juiz conselheiro para quem a publicitação dos comportamentos assediantes e das condenações por assédio, nomeadamente nas empresas “reincidentes na matéria”, serão eficazes no travão à repetição destes comportamentos. “Em Portugal há uma ideia estranha de protecção da privacidade e intimidade (…) nunca percebi por que é que em acções normais nunca são publicados os acórdãos com o nome das partes. Se o fizessem, descobririam facilmente que as seguradoras não são todas iguais. E também aqui seria importante que os nomes das empresas fossem publicados porque o público não sabe quais são as empresas que recorrem, algumas de maneira bastante sistemática, a práticas assediantes.”

A interdição das empresas condenadas por assédio de participarem em concursos públicos ou acederem a medidas activas de emprego para estágios profissionais foram igualmente louvadas pelo representante do Supremo Tribunal de Justiça.

Manuel Roxo, subinspector geral da ACT

300 inspectores para um milhão de empresas

Na Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) há “uma orientação genérica de dar prioridade absoluta” a todas as queixas relacionadas com assédio no local de trabalho, segundo o subinspector-geral Manuel Roxo. Porém, com apenas 300 inspectores ao serviço, é impossível chegar às cerca de um milhão de empresas existentes em Portugal, “sendo que noventa e tal por cento têm até dez trabalhadores”. “A população activa é à volta de 4,5 milhões de trabalhadores — agora um pouco mais por causa da retoma do emprego — e é este universo que temos de tratar com estes 300 operacionais”, apontou Roxo, para concluir: “Isso dá bem conta da necessidade que temos de escolher bem os nossos alvos e do volume de trabalho que nos cai em cima.”

No domínio do assédio, a ACT anda “entre os 14 e os 18 autos de notícia levantados” por ano, sem contar com os autos levantados por “violação do direito de ocupação efectiva”, usada muitas vezes como “forma de achincalhar os trabalhadores”, configurando como tal uma manifestação de assédio.

O responsável da ACT deixou ainda dois apelos claros aos deputados. O primeiro é que trabalhem no sentido de garantir a inclusão, na lista classificada de doenças profissionais, das doenças do foro mental e as derivadas de factores “acontecidos ou decorrentes do relacionamento social dentro das empresas”. “A Organização Internacional do Trabalho já nos propõe uma lista de doenças profissionais onde as doenças mentais originadas no trabalho estão incluídas”, informou, para sublinhar que o atraso português nesta matéria conjuga-se com algum “conservadorismo atávico” da jurisprudência portuguesa mas “não é distinto da legislação comunitária neste domínio”.

O segundo apelo foi para lembrar que não é pelo agravamento sistemático das sanções que se consegue maior adesão à lei. “A experiência que tenho é que, quando as sanções são demasiado graves, não são aplicadas”, disse, apelando à prevenção e lamentando a inexistência de estudos sociológicos que ajudem a compreender melhor o que leva as pessoas a cumprir determinada lei.

Ana Vieira, Confederação do Comércio e Serviços de Portugal

Inversão do ónus da prova, sim, mas só se o assediante for o empregador

Sem querer negar que o assédio moral e sexual no local de trabalho existe, a secretária-geral da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCSP), Ana Vieira, disse ter dúvidas de que a melhor forma de os enquadrar seja através de projectos legislativos, “principalmente se introduzirem um conjunto de conceitos que, ao invés de clarificar, dificultam”.

Vieira confessou-se “quase chocada” com o “tom excessivamente alarmista” que encontrou nalguns preâmbulos dos projectos dos diferentes partidos e qualificou como “excessiva” a afirmação de que muitas empresas beneficiam com tais práticas.

No mesmo tom, o consultor jurídico da CCSP, Alberto Sá e Mello, lembrou que o Código do Trabalho já prevê, no seu artigo 29.º, “a indemnização em caso de assédio e o direito de resolução do contrato do trabalhador” nestas situações, para questionar a necessidade de se voltar a legislar sobre a matéria.

Quanto às propostas concretas, o advogado dos “patrões” disse discordar da inversão do ónus da prova, porque “obriga o empregador, face a uma denúncia, mesmo que não fundamentada ou substanciada, a fazer prova negativa”. “Como é que isto pode ser feito, no caso designadamente de o assédio ser provocado por outro trabalhador?”, questionou, para concluir que tal proposta mais não é do que uma “presunção de culpa”. “Há uma denúncia, o trabalhador assediado pretende ir embora e tem o empregador de provar que não houve assédio por parte do outro trabalhador!? Não vejo como é que isso se faz”, criticou Sá e Mello, dizendo concordar que o ónus da prova se inverta, sim, mas apenas quando o assédio é infligido pelo empregador ou qualquer outro superior hierárquico.

Quanto à proposta do BE, que queria ver declarado como ilícito qualquer despedimento de um trabalhador que no ano imediatamente anterior tenha sido vítima de assédio, o consultor da CCSP considerou que tais presunções só devem estabelecer-se quando “haja razoabilidade”. “Imaginemos um trabalhador que ficou perturbado por causa do assédio de outro colega e que, no ano seguinte, começa a degradar a sua prestação, faltando injustificadamente, por exemplo, e consubstanciando outros factos que dão origem a despedimento. Como é que se vai pressupor ilícito o despedimento por ter essa causa remota? Quem é que estabelece essa causa remota?”.

Por último, qualificou como “manifestamente desproporcionada” a proposta de obrigar um empregador que tenha sido condenado por assédio a fazer menção expressa dessa condenação em todos os anúncios de emprego que divulgue, porque “isso seria a mesma coisa que obrigá-lo a encerrar a actividade”.