Cannabis e gays. Psicólogo da TVI volta a ser alvo de queixas

Entidade Reguladora para a Comunicação Social analisa novas queixas contra declarações de Quintino Aires já depois de ter pedido à TVI para não permitir comentários que incitem ao ódio ou à discriminação.

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REUTERS/Mark Blinch

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) recebeu até quarta-feira nove queixas relativas a comentários proferidos pelo psicólogo Quintino Aires no Você na TV, de 14 de Junho. O comentador residente do programa da TVI afirmou que “75% das pessoas que consomem cannabis têm relações com pessoas do mesmo sexo”.

Entre as gargalhadas do público presente no estúdio, o psicólogo repetiu a revelação, segundo ele “recente”, que lera num “estudo científico”.

Perante as queixas, foi aberto um inquérito, diz Luísa Roseira, vogal do conselho regulador da ERC. “O operador televisivo vai ser ouvido e posteriormente o regulador decidirá”, esclarece. Esta é uma questão complexa sobre o que é “opinião livre e o limite de tudo o que pode incitar ao ódio”, diz. Porém, e como já houve “decisão anterior de sensibilização do mesmo programa com o mesmo comentador, os antecedentes terão obrigatoriamente de ser tidos em conta”.

Luísa Roseira admite que, desta vez, “ao operador televisivo — a TVI — poderá ser aplicada uma sanção mais grave, que não uma mera sensibilização”. Sanção de que tipo? “Poderá considerar-se que houve uma violação legal da lei da televisão e em resultado disso haver uma contra-ordenação”.

Em Julho do ano passado, no programa apresentado por Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira, Quintino Aires disse que “a maioria [dos ciganos em Portugal] vive dos subsídios ou trafica droga e não trabalha” A ERC recebeu então, em quatro dias, dez queixas de cidadãos e 27 outras queixas que tinham chegado ao Alto Comissariado para as Migrações.

Seis meses depois, a ERC deliberou no sentido de “sensibilizar a TVI a garantir, de futuro, uma protecção cabal e constante da dignidade dos cidadãos e a não transmitir conteúdos que, de alguma forma, contribuam para a estigmatização de grupos sociais, em função da sua etnia”.  

Na decisão, distingue “os conteúdos de natureza informativa (...) sob a alçada da direcção de informação” e que “se regem pelas normas legais e éticas da actividade jornalística” e os “conteúdos que, embora podendo possuir elementos que informam os públicos”, se inserem “na categoria de entretenimento”. Remete para “o campo do exercício da liberdade de expressão”, mas também lembra que a lei da televisão, no seu artigo referente aos limites à liberdade de imprensa, estabelece que “a programação televisiva não pode incitar ao ódio racial, religioso, político, ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela deficiência”. Em conclusão, delibera no sentido de uma sensibilização da TVI para que situação semelhante não volte a acontecer.

Opinião de especialista?

O PÚBLICO tentou ouvir o psicólogo Quintino Aires que não respondeu a dois pedidos de entrevista. A estação televisiva, também contactada, a propósito das reacções negativas às declarações de 14 de Junho, sobre a homossexualidade e o consumo de cannabis, defende-se e lembra que Quintino Aires participa “em vários outros órgãos de comunicação social”: “O Dr. Quintino Aires expressa-se na antena da TVI com a liberdade que o sistema jurídico lhe permite, e que é própria dos países livres e das sociedades abertas e democráticas. A TVI é uma instituição firmemente comprometida com o respeito pelas normas legais aplicáveis à sua actividade e o programa Você na TV não é excepção.”

Para Carla Cruz, socióloga da Comunicação e professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, “a liberdade de expressão do Dr. Quintino Aires vai contra a responsabilidade civil que tem a TVI, enquanto emissora de conteúdos mediatizados”.

“A grande questão é que [o comentador] está [neste espaço] a confundir uma opinião pessoal com uma opinião de um especialista e essa confusão passa para as pessoas, acaba por haver essa contaminação.” Com duas agravantes: “Os programas da televisão em Portugal, apesar da massificação da Internet, continuam a ser aqueles que chegam a mais pessoas” e a maioria dos telespectadores deste programa — como se pode ver nos perfis das audiências — são pessoas com um rendimento médio familiar baixo, “que integram muito facilmente qualquer opinião sem distinguir o que é subjectivo daquilo que é científico”.

E alerta: “Quando do outro lado estão pessoas sem esse conhecimento técnico, vão recolocar-se nessa posição, vão aderir a ela. A TVI tem que ter em conta que está a credibilizar informação subjectiva.”

“Propaganda” e impunidade

“Este senhor está nesse programa como psicólogo e não como cidadão Quintino Aires. E é moralmente censurável estar a fazer propaganda de alguma discriminação. Está a debitar opiniões pessoais e a transpô-las para o grande público que depois mimetiza essas posições, essa discriminação”, insiste Carla Cruz sobre “o consultório aberto e gratuito que [Quintino Aires] tem na televisão”.

“Muitas pessoas exacerbam o reconhecimento público de alguém pelo número de vezes que aparecem na televisão”, nota ainda a socióloga e professora universitária. “Ele vai revalidando diariamente o seu valor e a sua opinião que passa como a opinião de um especialista.”

Numa entrevista à revista Happy Woman, em 2014, Quintino Aires afirmava: “Fazer sexo com animais aumenta a ligação entre o ser humano e a natureza. Não devemos considerar a zoofilia uma perversão, mas sim uma celebração das nossas origens. No fundo somos todos animais.”

Nesse ano, no programa da Rádio Antena 3 A Hora do Sexo, criticou um concorrente de um reality show que não tinha iniciado a actividade sexual aos 26 anos. Qualificou a virgindade como problema de “saúde pública” e aconselhou os ouvintes a recusarem “estas patologias sociais”.

Sobre isso, a revista Sábado perguntou-lhe numa entrevista em Agosto do ano passado: “Tem dados científicos ou é uma opinião sua?” O psicólogo respondeu: “Não, isso não fui eu que descobri. É um estudo publicado, tem uma base científica.”

Nestas várias ocasiões, em comentários publicados nas redes sociais, muitas pessoas se insurgiram contra o potencial efeito das opiniões de Quintino Aires na “fanatização da sociedade” e houve quem apontasse “o risco que [ele] representa para a saúde pública”. Foram lançadas petições online — no caso das declarações sobre a comunidade cigana e no da ligação da comunidade homossexual ao consumo de cannabis — nas quais os signatários consideram que “a reincidência destas práticas”, entre outros aspectos, “demonstra uma postura de impunidade que deve ser combatida”.

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