Os psi, modelo de luxo

Os cuidadores e curadores da psique, os psi, são quase sempre muito mal representados na rádio e na televisão, o que não contribui para uma boa imagem pública da classe nem para o prestígio da respectiva ciência.

 A classe dos psi (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas) é a mais mal representada no espaço público mediático. É uma classe condenada ao vexame infligido pelos seus pares com lugar fixo nos meios de comunicação social. Sempre que um psi entra em cena, o mais certo é proferir um discurso que nem sequer é feito de lugares-comuns porque é pouco comum que alguém faça um uso tão deplorável da sua ciência. Devemos acreditar que os psi chamados a assistir pessoas traumatizadas por desastres violentos são muito mais competentes na situação clínica do que os seus pares escolhidos para a tagarelice psico-mediática (os quais, por sua vez, podem ser de uma enorme competência profissional nos seus consultórios: não é isso que discutirei aqui). Antes de prosseguir, terei de confessar, para que se avalie melhor a dimensão da minha hostilidade, que há muito tempo dei aos livros psi que tinha em casa o mesmo destino que muita gente deu à sua biblioteca de marxismo: arrumei-os numa arrecadação de indigências. Salvei apenas a secção freudiana. Para apreender a nulidade dos psi com acesso aos media, basta citá-los; para que eles se sintam vilipendiados, basta devolver-lhes as próprias palavras. É o que farei, reproduzindo um excerto de um dos residentes fixos de um programa da TSF chamado “Pensamento Cruzado”, três minutos por dia que, compilados, dão um tratado de idiotice. Os dois sujeitos que cruzam o respectivo pensamento, desafiados por uma pergunta ou um tema proposto por Mésicles Helin, chamam-se Margarida Cordo e Vítor Cotovio. Transcrevo uma pequena parte do último programa disponível em podcast no dia em que escrevi este texto (escolhendo o último, não permito que o leitor pense que fui em busca do que melhor servia os meus propósitos). Nesse dia, os dois psi tinham a missão de comentar uma frase de Pessoa. Nada que um psi treinado nos microfones não faça com desenvoltura. Eis a frase: “Fazer qualquer coisa ao contrário do que todos fazem é quase tão mau como fazer qualquer coisa porque todos a fazem”. Eis Margarida Cordo: “A afirmação pela bizarria, há muita gente que se afirma e isto em termos de sociedade, vemos isto em muitas áreas, não é?, as pessoas afirmam-se pela bizarria, ou seja, afirmam-se porque fazem tudo ao contrário mas não tem sentido, já vimos aqui várias vezes que fazer o que toda a gente faz não faz qualquer sentido, porque é só porque os outros fazem, não passa pela vontade, não passa pela deliberação, não passa pela escolha nem pela decisão, e também às vezes nem sequer passa pela identificação, só em determinadas etapas do crescimento, passa pelo porque sim, que é nada [...] A afirmação pela bizarria é muito pouco construtiva, ou seja, quase sempre não tem sentido, mesmo nas expressões artísticas bizarria não é arte, bizarria é contra-atitude [...]. Em determinados núcleos ou se quisermos até grupos dentro da sociedade é para ferir, para no fundo para criar circunstâncias que são de conflito e portanto o que nós estamos aqui a... quando falamos desta frase, estamos a dizer que esta frase apela a que cada um reflicta sobre o que é que na sua conduta e nas suas atitudes pode ser verdadeiramente construtivo [...]. Fazer com sentido é aquilo que nos leva a tudo o que pode ser construtivo e contribuir de uma forma digna e consistente para a evolução”. NOTA: 1) a pontuação é a única coisa nesta transcrição que não é atribuível ao psi que todos os dias úteis cruza o seu pensamento com outro psi; 2) Se transcrevêssemos as falas de todos os outros psi com os quais nos cruzamos, sem pensar, noutros programas de rádio, obteríamos mais ou menos o mesmo resultado.

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