Saúde: “saldos” e “borlas” para atendimentos demorados?

A saúde é um direito e deve ser sempre entendida como um bem, mas um bem infungível!

O Partido Ecologista “Os Verdes” entregou, no Parlamento, dois projetos de lei prevendo o reembolso e a devolução das taxas moderadoras aos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), em casos de demora significativa no atendimento de urgência e em casos de desistência por parte do utente desse mesmo atendimento. A intenção desta força partidária (em relação à qual nutro simpatia em muitos aspetos) parece-me benigna e, em certa medida, afigura-se-me defensora dos direitos dos utentes do SNS.

Em grande parte das unidades de saúde hospitalares, a gestão dos tempos de urgência é consubstanciada no Protocolo de Manchester. Ora, este protocolo permite que, através de um pequeno, mas adequadamente validado, rastreio, se distribuam os utentes por diferentes categorias a que equivalem diferentes tempos de espera: de atendimento imediato (categoria mais urgente) até quatro horas de espera (para casos de menor complexidade e sem problemas recentes, que podem, e devem, ser atendidos em consulta ambulatória).

Tomando como eficaz o Protocolo de Manchester e tomando como competentes os técnicos de saúde que laboram nas nossas instituições, por que razões os atendimentos, muitas vezes, ultrapassam os tempos máximos protocolados? Bom, as razões são variadas e têm sido largamente debatidas: carência de recursos humanos e de tecnologias adequadas em algumas instituições de saúde com responsabilidade de atendimento de urgência a zonas de elevada densidade populacional, carência de técnicos e meios, bem como horários diminutos de funcionamento, nas unidades de prestação de cuidados primários mais localizadas (vulgo, centros de Saúde) e utilização “inadequada” dos utentes (que, muitos, nem sequer têm médico de família designado, constituindo os utentes portugueses uns dos menores “frequentadores” europeus das consultas médicas – “portugueses”: quatro consultas por ano, em média; europeus: sete consultas por ano, em média. Dados da OCDE).

Ora, se a administração pública começar a fazer umas contas às “borlas”, tipo “saldo”, por não cobrar os atendimentos que ultrapassem o tempo previsto para cada categoria nos serviços de urgência, rapidamente compreenderá o seguinte:

— é muito mais barato dar algumas “borlas” no SNS do que contratar os técnicos e adquirir os meios necessários a um funcionamento adequado das urgências; até porque muitos dos atrasos serão, de uma forma ou de outra, “justificáveis”;

— é mais fácil incentivar os técnicos (como já o tem tentado fazer inúmeras vezes) a trabalharem horas extraordinárias (ainda que por preços irrisórios e desvalorizando o risco relacionados com o excesso de horas de trabalho nestas profissões – quer para o técnico, quer para o utente);

— e, eventualmente, poderá lançar concursos públicos (ou não) para um novo cargo — uma espécie de (sub)provedor do utente para as reclamações relativas ao não cumprimento dos tempos máximos de atendimento de acordo com o Protocolo de Manchester.

Bem, ironias à parte, reitero o que disse inicialmente: a intenção do PEV parece-me benigna e, em certa medida, afigura-se-me defensora dos direitos dos utentes do SNS. Contudo, o risco de possibilitar o desenvolvimento de consequências malignas, quase neoplásicas, é elevadíssimo. O SNS deve funcionar de acordo com princípios e não com exceções. E o princípio é o do cumprimento dos tempos de atendimento de acordo com o Protocolo de Manchester e não se compagina com uns “descontos”, “saldos” ou “borlas” em casos de mau atendimento. A saúde é um direito e deve ser sempre entendida como um bem, mas um bem infungível! 

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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