Petanca. Viver a reforma dentro de um rectângulo

É uma forma de sair de casa, de colocar a conversa em dia e de praticar exercício. Homens e mulheres, velhos e novos praticam a petanca. Em Guimarães, os recintos estão cheios, mas os números apontam para outro panorama.

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Ainda são poucos, mas é cedo. A tarde tem o potencial de ser longa e quem espera tira proveito dos pedaços de sombra que o sol permite. À medida que o dia avança, o cenário compõe-se e quem passa pelo Parque das Taipas, em Guimarães, a meio da tarde durante a semana, verá mais de 70 pessoas a ocuparem rectângulos numerados e a conversar nos bancos. “Ao fim-de-semana, você nem imagina. Ao sábado, juntam-se aqui 150 pessoas”, estima João Lemos, sócio n.º 103 e um dos fundadores do Clube de Petanca das Taipas.

Às 14h30 ainda não chegaram todos os convocados. É natural, muitos ainda têm alguns quilómetros para fazer. O próprio João faz praticamente todos os dias os dez quilómetros que separam Mesão Frio de Caldas das Taipas. O mesmo acontece com muitos que, depois do almoço, saem de Morreira, Joane ou Póvoa de Lanhoso para atirar bolas dentro de um rectângulo.

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Enquanto João Lemos aponta para os que vêm de mais longe e em jeito de confissão revela os melhores jogadores do clube, junta-se à conversa um taipense. Manuel Ferreira fundou o clube em Outubro de 2007. “Nós somos federados desde 2007. Em 2003 já funcionava, mas com o apoio do Centro de Actividade Recreativo Taipense”, revela.

A nível nacional, o ano de 1992, data do aparecimento da Federação Portuguesa de Petanca (FPP), atira a modalidade para um maior reconhecimento. Antes a dispersão era muita, mas com os clubes que aparecem a Norte e o estabelecimento da Associação de Pétanca Zona Norte, as viagens começaram a ser mais curtas.

“Isto, no princípio, dava que fazer. Tínhamos que nos deslocar a Almeirim, Ourém. Era para onde tinha de ir para fazer as reuniões com a associação. Agora é uma jóia. Agora é tudo mais perto”, admite Manuel Ferreira.

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Leonardo Gonçalves é treinador da Federação Portuguesa de Petanca desde 2010 e assistiu à evolução da modalidade, principalmente no Norte. “Em algumas regiões do país temos registado algumas melhorias. Na região do Algarve tem aumentado o interesse, mas também temos assistido a uma grande subida no Norte”, comenta.

É bonita a festa, pá

Manuel não gosta de câmaras. Prefere estar atento ao que se passa dentro das quatro tábuas. Quando se enche, vai para o café ao lado, mas volta rapidamente. Gosta de lembrar a festa e o que já fez pelo parque e pelo jogo. Não foram só viagens de quilómetros. Afinal, também há que molhar o pé na política.

Lembra que sem a petanca o parque era muito diferente, diz mesmo que antes “nem se conseguia passar sozinho” em algumas zonas. A razão? Drogas e prostituição. Agora tudo é diferente. Umas reuniões com “gente do poder” deram a Manuel a oportunidade para dinamizar. “Agora é que isto é bonito, pá. Até a canalha da escola joga a isto. As senhoras também”. Algumas até campeãs.

Mas se a festa se faz à volta do jogo, a pergunta de um leigo é simples: porquê a petanca? Não é preciso passar a bola a João Lemos para ter uma resposta. As razões saem-lhe num instante: “Obriga-nos a sair de casa, estar em contacto com a natureza e, parecendo que não, fazer algum exercício. Uma pessoa dobra-se para ir buscar as bolas, faz contas para a posição da bola”, enumera. Não mente. A fita métrica, no bolso ou pousada perto do recinto, é prova disso.

E se a matemática anda envolvida é porque há ciência no jogo. Contudo, as regras são simples.

A tarde já vai a meio e o parque enche-se. Há mais gente nos bancos, há mais gente nos rectângulos e até mais público em volta da sueca, que, mesmo assim, perde o habitual papel de protagonista para a petanca. Esse protagonismo, em Caldas das Taipas, é cada vez mais evidente. Manuel Ferreira, fundador do clube, afirma que “o número de atletas tem vindo a aumentar”. Fora da vila minhota, o cenário não é o mesmo.

Portugal tem vindo a perder atletas federados desde 2010 e caminha em contramão quando comparado com os números europeus. O pico de inscritos foi em 2008, com quase 1200 federados, e durante a primeira década do século os números não se afastaram destes valores. No entanto, agora são 800.

O seleccionador nacional de petanca, Leonardo Gonçalves, aponta para “a falta de revitalização de jogadores”. “Os clubes têm perdido os atletas mais velhos por uma ou outra razão”, esclarece.

Também há campeãs

Maria Gonçalves vem com o marido para juntos jogarem petanca. O homem rapidamente arranjou equipa e entrou na jogatina pela tarde fora. Maria aproveita para pôr a conversa em dia com as amigas que encontra no parque. Não há quem não reconheça as qualidades daquela que já levantou por quatro vezes a taça de campeã nacional.

“Não jogas, Maria? Até admira”, constatam, estupefactos por a verem distante das quatro linhas. “Nem sei. Não querem que eu jogue com eles”, brinca. Joga petanca desde a altura em que vivia em França. Esteve por lá 30 anos, no país onde a modalidade começou a ser praticada. Aos fins-de-semana ia ao parque para jogar com os homens. Tudo começou por influência do marido, que “pratica isto há mais de 20 anos”.

Participou em torneios tanto femininos como mistos. A petanca já a levou aos cantos e recantos de Portugal e até além-fronteiras. Não é a única mulher portuguesa a praticar a modalidade, mas foi das primeiras a fazê-lo. Mostra-se orgulhosa por ver “cada vez mais senhoras a irem aos torneios”. A vaidade perdura quando fala das reuniões diárias no parque entre malta da terceira idade. “Já viu a quantidade de pessoas que se juntam aqui para jogar?”.

E só não estão mais porque não há crianças nesta tarde, mas se as houvesse seriam poucas. Apesar do interesse ter crescido — a Confederação Europeia de Petanca aponta para quase 23.500 licenças atribuídas a atletas com menos de 18 anos — a prática em Portugal continua aquém de outros países europeus. Para o seleccionador nacional, as razões são simples: “O número de jovens e de praticantes tem aumentado na Europa porque a petanca passou a ser modalidade obrigatória nas escolas primárias de alguns países como é o caso da Suíça ou de França, algo que não acontece no nosso país”.

Ao contrário de Maria, nem todos são federados. Há quem encare o desporto de forma séria, mas também quem o faça por passatempo. Só pode competir a nível nacional e internacional quem tiver qualidade e registo na Federação Portuguesa de Petanca.

Por isso, nem sempre é fácil estimar o número de jogadores, já que os dados apontam só para o número de atletas federados e não para os muitos que aparecem durante a tarde para se recrear. Olhando para dados cedidos pela Confederação Europeia de Petanca, acerca do número de atletas federados ou com licença, é patente o domínio de países que adoptaram a petanca como modalidade obrigatória.

Estes países partem, naturalmente, em vantagem, mas Portugal vai dando cartas. E é nas mulheres que a qualidade parece abundar. Apesar das boas prestações de Portugal nos Europeus, os melhores resultados pertencem aos quadros femininos. No Parque das Taipas, Maria é o melhor exemplo disso. Não sabe quando voltará a competir, mas vai treinando.

“Venho já”, diz, colocando a mão no ombro da amiga de todas as tardes. Em direcção ao campo quatro, Maria pára nos cacifos improvisados onde pendura o material da petanca. Abre o saco, tira três bolas e espera por indicações para entrar em campo. “Boa tarde, senhores. Vamos lá?”. Está dado o apito inicial e rapidamente se ouvem palavras de apreço à estratégia utilizada pela campeã. “Boa. Muito bem, Maria”. Joga-se um “triplete” misto — 3x3, com homens e mulheres —, o habitual quando há muita gente a jogar no parque.

É ela quem assume a responsabilidade da pontuação. Desloca a mola para cima ou para baixo sempre que há mudanças no resultado. No campo em frente, a partida corre mal ao marido. Mas ainda há tempo para dar a volta ao marcador, pois, se tudo correr bem, por ali ficarão até ao pôr do sol.

O Ronaldo da petanca

No rectângulo ou nas bancadas, vão-se evidenciando alguns dos principais craques da modalidade. Quem os indica parece fazê-lo sem grande certeza. “Tem aqui alguns federados, outros que vêm só por gosto. Há malta que joga muito bem, mas não estou a ver neste momento nenhum que se destaque”, relata João Lemos.

A conversa foi outra aquando da aparição da vedeta das Taipas. Francisco “Alhinho” Ferreira caminha pela terra batida do parque até chegar ao rectângulo, altura em que os “fãs” anunciam a chegada: “Aí vem ele. Este é o Ronaldo da petanca”. Chegou quando a partida ia a meio. Habituado à ribalta, começou por avisar que queria falar para as câmaras

Enquanto espera pela sua vez, apresenta uma postura imperial, de rosto fechado e olhos postos nos adversários. “Alhinho” respira fundo sempre que é chamado a intervir, afasta as pernas arqueadas no momento do lançamento e revira os olhos sempre que comete um erro. Franzino, com pouco cabelo e desprovido de modas, retira a fita métrica do bolso traseiro das calças sempre que tem dúvidas sobre o lance. 

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“Ronaldo” deixou os colegas brilhar, mas nem por isso perdeu o jogo. As bancadas começam a ficar despidas. Os aguaceiros que apareceram ao fim da tarde obrigam ao cancelamento de uma partida com final imprevisível. “Acabamos amanhã, pessoal”.

No fim não houve flash interview.  A figura maior da petanca das Taipas rejeitou falar aos jornalistas. Deixou o recinto em passo lento, com o porta-lápis onde guarda as bolas a baloiçar na mão direita. A caminho de casa, há que reflectir sobre o que falhou nesta tarde menos conseguida.

Texto editado por Ana Fernandes

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