Da importância de coisas aparentemente laterais

A maneira como Salvador Sobral triunfou em Kiev justificou um merecido e impressionante reconhecimento.

Na passada segunda-feira, em Bruxelas, durante a conferência de imprensa habitual, a Comissão Europeia saudou Salvador Sobral pela sua vitória no Festival Eurovisão da Canção, recordando que se tratava de um antigo estudante Erasmus. Ao mesmo tempo, em pleno Conselho dos Negócios Estrangeiros, recebi felicitações de vários colegas. Já havia acontecido o mesmo noutras ocasiões, em virtude de sucessos políticos, como a eleição de António Guterres, ou económicos, como os que temos conhecido desde o segundo semestre do ano passado. Mas, evidentemente, em termos de cultura de massas, o termo de comparação é o Euro 2016.

Evoco estas saudações, não só porque elas me impulsionaram a escrever o presente artigo, como também porque ajudam a compreender o alcance do feito de Salvador Sobral. Em certames em que a competição se regula pelo quadro nacional, o resultado implica sempre, inevitavelmente, um certo posicionamento entre países. Gostemos ou não, devemos levá-lo a sério e, portanto, valorizar os passos positivos que conseguirmos dar nesse plano, quando as emulações não são absurdas ou degradantes. Vencermos um concurso musical em que participam 42 países e televisionado para uma audiência de 200 milhões de pessoas é um ganho em si próprio, com efeitos muito importantes quer para a nossa imagem internacional, quer para a auto-estima.

Isto, que já seria muito, é, porém, o que menos conta no êxito de sábado. Três outros aspetos são determinantes, dando outro sabor ao triunfo. O primeiro foi o uso e a projeção da língua portuguesa. O segundo, a afirmação de talento, marcando a distinção que se baseia na qualidade da composição e da interpretação musical. E o terceiro aspeto foi a singularidade que assim introduzimos, numa indústria tão dependente da lógica comercial, do marketing, da uniformidade e do monolinguismo.

Como disse, emblematicamente, Salvador Sobral, “a música não é um fogo-de-artifício”, mas uma forma criativa e cultural. A maneira como ele triunfou em Kiev, cantando em português uma canção que desafiou diretamente as convenções mais arreigadas do festival, assim estabelecendo uma diferença qualitativa radical, justificou um merecido e impressionante reconhecimento. O que significa, ponto capital, que não se trata apenas de celebrar uma vitória nacional, mas o modo como foi conseguida.

Os sucessos valem de pouco se forem ocasionais e efémeros, se não soubermos torná-los etapas de um processo contínuo de desenvolvimento. E é para as oportunidades deste processo que, como ministro dos Negócios Estrangeiros, quero chamar a atenção.

Não me cinjo ao facto de nos caber o acolhimento do Festival Eurovisão de 2018, cujas potencialidades económicas, turísticas e de projeção além-fronteiras são, contudo, evidentes. A música e a indústria musical (envolvendo o mercado discográfico, a edição digital, a difusão nos media, os concertos e digressões e os festivais de verão) constituem hoje uma zona de crescimento e internacionalização dos criadores, promotores e agentes portugueses. Do ponto de vista da política externa, podem e devem ser considerados, quer no plano da divulgação da língua e da cultura portuguesas, quer no plano do investimento e do comércio externo (sem esquecer a relação específica com as comunidades residentes no estrangeiro). Já estão no radar da AICEP — e bem se viu o êxito da parceria com os agentes privados, em janeiro passado, em Gröningen, quando Portugal foi tema de uma das principais feiras do setor. E interessam também ao Instituto Camões e ao programa conjunto entre os ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Cultura centrado na ação cultural externa.

Limito-me a uma área particular, a cultura de massas, que está, bem entendido, muito longe de representar o núcleo da identidade e fulgor criativo dos portugueses. Que não haja nenhuma dúvida sobre isso: não embarquemos mais uma vez naquele ciclo infernal de heroicização imediata seguida de desalento e deceção, nem pensemos que podemos trocar o trabalho árduo no conhecimento e nas artes pela ilusão do esplendor comercial. Mas também seria cegueira (e preconceito) ignorar o enorme potencial de expansão das capacidades nacionais, em domínios das indústrias criativa e do espetáculo de massas, para o prestígio e a influência global do país e para a internacionalização da sua economia.

O futebol (a seleção nacional, os clubes em competições europeias, a circulação internacional de treinadores e futebolistas, as escolas de formação dirigidas por portugueses no nosso e em vários outros países) e a música popular moderna (ou a recriação moderna da música tradicional urbana) são bons exemplos do que já se conseguiu e do muito que se pode ainda obter, se soubermos ter uma relação inteligente com as produções e os protagonistas da cultura de massas. A disseminação de uma boa imagem coletiva do país, o enriquecimento da marca Portugal com histórias e figuras a que as multidões podem aderir emocionalmente, a geração de valor económico e social e o estabelecimento de estruturas organizativas internacionais ajudam muito. Ajudam a economia portuguesa; ajudam os sistemas nacionais de inovação e criação; ajudam ao reconhecimento das comunidades emigrantes nas suas sociedades de acolhimento; ajudam ao fortalecimento dos laços entre essas comunidades e o país de origem; ajudam à promoção e difusão da língua portuguesa; ajudam à comunicação pública (interna e externa) dos recursos e competências nacionais. E, quer por fazerem tudo isto, quer pelo papel específico que asseguram no jogo de relações entre as nações (que é tão cooperativo quanto competitivo), podem realmente apoiar a ação político-diplomática portuguesa.

Por isso é preciso estar atento a todas as coisas que surgem e medram à nossa volta. Mesmo as que um olhar tradicional menorizaria, por estarem aparentemente longe das grandes áreas de soberania e política internacional, podem ser instrumentos preciosos para a nossa finalidade comum: afirmar o país, a sua língua, e os seus valores, o seu futuro.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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