As eleições francesas: a vitória da opção social-democrata

Mélenchon revelou-se um político de pequeníssima estatura e quantos o acompanham na vida política portuguesa limitam-se a revelar o seu carácter intrinsecamente antidemocrático.

Desta vez as previsões obtidas através de sondagens não foram desmentidas pelos resultados eleitorais finais. Tal como se previa de algumas semanas a esta parte, Emanuel Macron e Marine Le Pen vão disputar a segunda volta das eleições presidenciais francesas. Macron sairá muito provavelmente vencedor dessa contenda, que opõe duas concepções claramente antagónicas da França e do seu lugar na Europa e no Mundo.

Há, porém, vários motivos de reflexão proporcionados quer pelos resultados verificados, quer pela natureza do debate político ocorrido. No plano dos resultados não podemos deixar de registar desde logo a inusitada circunstância de se terem visto arredados da segunda volta os candidatos apoiados pelos partidos estruturantes de quase todo o período correspondente à V República francesa. Para isso contribuíram factores diversos: no caso da direita, a incompreensível obstinação de François Fillon em travar um combate político num estado de nítida inferioridade cívico-moral, e, no caso do PSF, a opção por uma candidatura politicamente imatura e ideologicamente acantonada num radicalismo esquerdizante impróprio de um partido com vocação governativa. De certa maneira poderemos afirmar que ambos cometeram verdadeiros suicídios políticos.

A direita liberal e democrática, que pela primeira vez não terá um representante na segunda volta, prepara-se já pragmaticamente para a chamada “terceira volta”, que corresponde às eleições legislativas que decorrerão em Junho próximo. Libertou-se já da pústula moral que o seu candidato à Presidência a partir de certa altura passou a constituir e enveredará decerto por um discurso bem distinto da mistura explosiva de ultramontanismo societal e de sectarismo anti-estatal que identificou a candidatura agora fenecida. Essa evolução não se fará de modo totalmente pacífico e permitirá o surgimento de um segmento soberanista, profundamente conservador e pouco propenso à adopção de teses liberais, que poderá fazer o seu caminho sem se deixar confundir com a extrema-direita herdeira de Vichy. Para perceber bem o que essa corrente poderá significar recomenda-se a leitura de um livro invulgarmente bem elaborado, da autoria de Patrick Buisson e intitulado La cause du peuple.

Já a esquerda terá um longo e exigente caminho para percorrer. Nestas eleições dividiu-se claramente em torno de três pólos com expressão eleitoral bastante diferenciada: um pólo antiliberal, anti-europeu, anti-atlantista e marcadamente estatizante, representado por Jean-Luc Mélenchon; um pólo de natureza social-democrata que hoje em França é designado por social-liberal, protagonizado por Emanuel Macron; um pólo algo utópico, ainda que não desprovido do mérito de lançar ideias inovadoras, assumido pelo candidato oficial do PSF Benoit Hamon. Macron, que nem sempre escapa a certa pulsão populista, apresentou, contudo, um programa próprio de um candidato do centro-esquerda, o que, aliás, não deverá surpreender num homem que surgiu para a política pela mão de François Hollande, a quem serviu no Eliseu e de quem foi mais tarde ministro da Economia. Esse programa integra simultaneamente medidas de cariz liberal e outras que denotam inquestionáveis preocupações de justiça social. Num país onde a despesa pública representa 57% do PIB, em grande parte dominado por interesses corporativos e mentalmente influenciado por uma cultura económica de natureza colbertista e proteccionista, a opção por um certo liberalismo económico faz todo o sentido; ao mesmo tempo regista-se a preocupação com o reforço do investimento público, o apoio preferencial aos sectores com maiores problemas de integração e a valorização do sector educativo como factor promotor de mobilidade e gerador de igualdade. No domínio laboral, o candidato do movimento En Marche! preconiza, na boa linha social-democrata, a descentralização das negociações sociais para o nível da empresa, uma melhor representação dos assalariados nos conselhos de administração e uma profunda reforma do sistema de formação. Vai ainda mais longe e defende a extensão da protecção social no desemprego aos trabalhadores independentes. Apresenta uma sólida agenda ambientalista e propõe-se promover o acesso da juventude francesa à cultura através da criação de um passe cultural. Na questão europeia, Macron distingue-se pela proposta de adopção de um orçamento para a zona euro e de criação da nova figura de um ministro da Economia e das Finanças para essa mesma zona. No fundo, não se vislumbram diferenças substanciais entre este programa e aquele que ficou conhecido pelo documento Centeno que serviu de base ao programa do Partido Socialista apresentado nas últimas eleições legislativas.

A peculiaridade da situação francesa poderá levar a que este projecto de centro-esquerda venha a suscitar a adesão de alguns sectores do centro-direita. Tal facto originará uma verdadeira refundação da V República e alterará drasticamente os termos tradicionais da confrontação política naquele país. Entre outras consequências, isso levará certamente a uma reorganização da esquerda democrática, tendo como resultado uma útil separação de águas entre um sector pró-europeu, liberal e democrático, e um outro, anti-europeu, antiliberal e portador de uma visão bastante redutora acerca da democracia. Esta profunda transformação da esquerda francesa não deixará de ter repercussões em vários países europeus. A Portugal chegará, como é costume, com alguns anos de atraso — espero que poucos, a bem do interesse geral do país e do interesse específico da esquerda mais inovadora em particular.

Muitas outras coisas haverá a dizer sobre estas importantes eleições, que continuarão a ser tratadas nos meus próximos artigos. Há uma coisa, porém, que não pode deixar de ser referida. O antiliberal Jean-Luc Mélenchon, num discurso marcado pelo ressentimento, recusou-se a apelar ao voto em Emanuel Macron. Em Portugal houve logo quem viesse aprovar tal atitude. Nos anos trinta do século passado um dos mais curiosos acontecimentos políticos verificados em França foi a da transumância da extrema-esquerda para a extrema-direita, com regresso, em vários casos, à posição de origem. Estas duas áreas político-ideológicas tinham em comum muitas coisas: o ódio ao liberalismo, a execração do mundo burguês, a repulsa pelo individualismo filosófico. Quando se confunde um projecto de natureza social-democrata com uma proposta fascista, xenófoba e racista está-se a adoptar um comportamento incompatível com o mínimo de decência moral. Mélenchon revelou-se um político de pequeníssima estatura e quantos o acompanham na vida política portuguesa limitam-se a revelar o seu carácter intrinsecamente antidemocrático.

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