O nó górdio

O prémio a Frederico Lourenço não nos deve iludir. O mundo sobre o qual ele estuda, escreve e traduz é cada vez menos presente no espaço público do saber, onde cada vez menos se sabe sobre o mundo clássico.

Dedicado à memória de José Medeiros Ferreira, 
que uma vez, numa entrevista, falou do “nó górdio”
a uma jornalista, que lhe disse que não sabia o que aquilo era
e recebeu como resposta: “Se não sabe, devia saber”.

Um Prémio Pessoa mais que merecido foi atribuído a Frederico Lourenço, pela sua obra de especialista e tradutor de literatura clássica, em particular literatura grega. A sua recente tradução da Bíblia a partir do texto grego tem sido saudada como um acontecimento cultural de relevo, mas Frederico Lourenço já tinha traduzido muitos outros textos clássicos, com relevo para Homero. É apenas pena, mas as coisas são como são, que muitos Prémios Pessoa sejam para o homem que foi falado nos seis meses anteriores ao prémio, mas isso é infelizmente um costume cada vez mais comum, resultado da mediatização de toda a vida pública. Num dos sítios em que esta mediatização mais estragos faz é na cultura, mas isso não invalida o mérito do prémio a Lourenço.

O prémio a Frederico Lourenço, no entanto, não nos deve iludir. O mundo sobre o qual ele estuda, escreve e traduz é cada vez menos presente no espaço público do saber, onde cada vez menos se sabe sobre o mundo clássico, e, embora nunca se soubesse muito comparado com os países da Reforma, também cada vez menos se sabe sobre a Bíblia. Não nos devemos iludir quanto ao valor que a escola, a universidade, a sociedade, a comunicação – já para não falar das chamadas “redes sociais” – e a política hoje dão às humanidades e aos estudos clássicos. Esse valor é quase nulo. Pelo contrário, é entendido como um conhecimento inútil, que justifica o corte de financiamentos, a colocação no último lugar da fila, quando não da extinção curricular, das disciplinas do Latim e do Grego, que conseguem ficar atrás da Filosofia. E não é só este cerco às humanidades clássicas — em bom rigor a todas as humanidades — é a sua desvalorização pública implícita em muito documento, declaração política, e em acto.

O mais flagrante exemplo é a defesa de um Acordo Ortográfico que se pretende impor manu militari, e que corta as raízes ortográficas do português no latim. Já para não falar das invectivas contra o conhecimento daquele “comissário” jovem que melhor do que ninguém explica a atitude do extinto Governo PSD-CDS para com estas matérias. E quem escreve ist, considera que se é tanto ignorante se não se souber o que é o princípio de Arquimedes, ou a segunda lei da termodinâmica, como desconhecer quem era Polifemo ou Salomão, ou Judite ou o Bom Samaritano.  

A menorização das humanidades, e a ainda maior desvalorização dos estudos clássicos, vem junto com a redução da memória colectiva. A perda de raízes é uma constante nas sociedades contemporâneas, não só em Portugal, mas em Portugal com a gravidade maior de que a nova ignorância se soma à antiga. E em que há pouca consciência dos estragos que essa nova ignorância nos faz, fazendo-nos andar para trás.

O problema actual da ignorância é que a ignorância nunca teve tão boa imprensa, tão bons defensores, tão arrogantes cavaleiros contra o saber, como nos dias de hoje. Um destes frutos da nova ignorância é Presidente dos EUA, e acha que tudo o que é preciso saber para se ter sucesso é conduzir o país ao modelo dos seus negócios predadores, e das ideias racistas e xenófobas que nascem nos lugares mais infectos das redes sociais. E estando ele onde está, escolhe os seus colaboradores ao mesmo modelo, que escolherão os altos funcionários pela mesma bitola – na verdade "comissários" destinados a zelar pelo #MAGA – e por aí adiante, embrutecendo a sociedade de cima para baixo, dando toda a razão ao ditado popular de que o “peixe apodrece pela cabeça”. A dissolução de todos os padrões que implicavam que era preciso saber alguma coisa de ambiente, de comércio internacional, de política externa, de educação para se exercerem funções nessas áreas explicam por que razão a “desconfiança do conhecimento” (“distrust for expertise”) e a dissolução da verdade (“fake news”) são hoje os critérios de funcionamento da administração Trump. E enganam-se todos os que não percebem que estas atitudes são modernas, moderníssimas, tanto como o último telefone inteligente, para usar uma comparação apropriada.

E não é só nos EUA, também cá temos cada vez mais activos zeladores da ignorância que querem colocar uma bola onde costumava, quando os animais falavam, estar uma cabeça humana. As ideias circulantes de que se substituem “literacias”, como agora se diz, que “já nada dizem” aos jovens de hoje (e aos adultos diga-se de passagem), por outras “literacias” que as substituem e são “mais apelativas” porque se podem digitar num telefone, ou numa mensagem de 140 caracteres, ou “postar” como fotografias de comida, ou a loquacidade vazia e deprimente do WhatsApp, destinadas a substituir a sociabilidade presencial pela sociabilidade virtual, são instrumentais para justificar a ignorância e varrer dos currículos tudo aquilo que parece inútil, substituindo o conhecimento pela tagarelice e pelo generalizado défice de atenção.

Não. Os conhecimentos não se substituem uns aos outros, complementam-se. E o que falta, faz sempre falta. Várias vezes me interrogo como é possível atirar alunos do secundário para ler Os Maias, ou seja que obra for de Eça, ou Camilo, ou Camões, ou Gil Vicente, ou Nemésio, ou Jorge de Sena, ou seja lá que obra literária que é suposto ler-se no secundário e nos anos de escolaridade obrigatória, sem saber nada de mitologia grega ou da Bíblia, já para não falar do rico vocabulário do português que não cabe numa mensagem do Twitter. Não sei, aliás, por que se pensa nos nossos dias que “não cabe” na cabeça das pessoas muita coisa. É irónico que a modernidade nos forneça discos rígidos com terabites de espaço, e pareça encolher-nos as cabeças.

Voltando a Frederico Lourenço, podemos de facto viver confortavelmente, em particular se herdarmos alguma coisa, e ter sucesso, sem saber nada da Odisseia, ou da Antologia Grega, saber quem era Argos ou Tifão, desconhecer tudo de Esparta e Atenas, de Sófocles e Tucídides ou nunca ter lido uma “vida” de Plutarco (por falar nisso, uma leitura obrigatória durante mais de um milénio para todos os que quisessem ter uma vida pública…) ou dos relatos em que um profeta apocalíptico chamado Jesus anunciava o fim do mundo e o caminho da “salvação”. Podemos. Mas somos mais pobres por isso.

Antigamente isto chamava-se “experiência indirecta”, não substituía a directa, mas ajudava muito. E, numa curva da vida, em vez de ir a correr a um praticante de qualquer terapia arcana, ou à bruxa – o que, para a nova ignorância, não é tão diferente como isso – sempre se podia saber que outros homens e mulheres, que vivem no mundo dos “antigos”, conhecem alguma coisa sobre a doença ou a morte, sobre a felicidade e a curiosidade, sobre a esperança e o destino inelutável, sobre a heroicidade e a cobardia, sobre a traição e a lealdade, sobre a honra e a vergonha, sobre a intriga, a moda e o sexo. As suas palavras tinham toda a força, porque eram muitas vezes as primeiras que eram escritas sobre as mais humanas das atitudes, e estão no terreno que pisamos, mesmo que não o saibamos. Mas vale muito mais saber.

P.S.: E nem sequer custa dinheiro. Na colecção Classica Digitalia estão, por exemplo, as duas últimas obras, traduções de Carlos de Jesus, de partes da Antologia Grega. Uma é a tradução da Musa dos Rapazes, que é aquilo que o próprio nome indica, uma antologia de poemas sobre a homossexualidade, e o Apêndice de Planudes, uma antologia de epigramas que exerceu enorme influência, durante séculos, em quem se iniciava no grego. Querem um exemplo do que lá está, escolhido a dedo para não ferir as susceptibilidades dos sisudos leitores do PÚBLICO, com algumas considerações poético-anatómicas, digamos assim, muito vivas? De Meleagro,

Não mais escreverei sobre o belo Téron, ou Apolodoro,
antes fogo incandescente, agora cinza apagada.
Prefiro o amor de mulheres; refregar-se com garanhões
hirsutos é para pastores que montam as suas cabras.

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