Pascoaes: o mago do Marão regressa ao cânone

Um congresso internacional em Amarante e uma exposição na Biblioteca Nacional são os mais recentes sinais exteriores da revalorização da obra de Teixeira de Pascoaes, o grande poeta visionário que o modernismo pôs fora de moda.

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Teixeira de Pascoaes DR
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Casa Teixeira de Pascoaes Nelson Garrido
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Teixeira de Pascoaes numa foto de juventude DR
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Com Sebastião da Gama, em Gatão DR

Teixeira de Pascoaes (1877-1952) nunca deixou de ter admiradores, de Jorge Sena a Mário Cesariny, que o prezava acima de Fernando Pessoa, mas vinham sendo cada vez menos os que o liam e estudavam. Colocado fora de moda pela geração do primeiro modernismo, o poeta de Amarante fora há muito banido das descrições escolares da evolução da moderna poesia portuguesa, que vêem em Antero, Cesário, Nobre e Pessanha os quatro grandes precursores da geração de Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Uma narrativa que pode estar em vias de ser revista.

Foi justamente a constatação do progressivo esquecimento da figura e obra de Pascoaes que motivou a investigadora Sofia Carvalho a idealizar o Triénio Pascoalino, um vasto programa de iniciativas lançado em 2014, e que terminou esta semana em Amarante com o congresso internacional Teixeira de Pascoaes: Pensamento e Missão. “O projecto partiu da minha impressão, que fui comprovando, de que quase já não existiam leitores de Pascoaes, sobretudo nas camadas mais jovens”, diz Sofia Carvalho, para quem esta resistência se poderá dever a “alguma incapacidade para perceber o tom e o temperamento deste autor de alta magnitude”. Mas a investigadora tinha também “a certeza inequívoca de que Pascoaes é um autor de dimensão universal” e, com a colaboração de várias instituições, incluindo a Câmara Municipal de Amarante e a Biblioteca Nacional – que inaugurou em Fevereiro a exposição Pascoaes: de Amarante (Solar de Gatão) ao Universo –, tem-se empenhado em devolver o visionário do Marão à primeira linha da literatura portuguesa do século XX.

Duas teses sedutoras

Mas se indagarmos as causas próximas deste súbito movimento de revalorização da obra de Pascoaes, é bem provável que o impulso decisivo esteja, por estranho que pareça, escondido no quarto capítulo de um livro publicado em 2015 pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda: Uma Admiração Pastoril pelo Diabo (Pessoa e Pascoaes), de António Feijó. Nessas cerca de vinte páginas, o director da Faculdade de Letras de Lisboa e coordenador do projecto Estranhar Pessoa, reelaborando e aprofundando algumas ideias já sugeridas no prefácio que escrevera, em 1992, para a edição da Assírio & Alvim de S. Jerónimo e a Trovoada, sustenta que Alberto Caeiro é a resposta polémica de Fernando Pessoa a Pascoaes e vê no sistema gnóstico do poeta minhoto uma prefiguração da teoria da criação poética e da influência literária proposta pelo crítico norte-americano Harold Bloom em livros como A Angústia da Influência ou o Cânone Ocidental.

A arrojada sedução de ambas as teses, aliada ao prestígio de Feijó junto da nova geração de investigadores portugueses, veio ajudar a quebrar o persistente preconceito que reduzia Pascoaes a uma espécie de extravagante e ultrapassado poeta místico, autor de poemas hoje ilegíveis de tão extensos, como Marânus (1911) ou Regresso ao Paraíso (1912). Uma visão que oblitera em grande medida os seus muitos livros posteriores ao lançamento de Orpheu, sendo que Pascoaes escreveu provavelmente o melhor da sua obra não apenas depois de 1915, mas após a morte de Pessoa, a quem sobreviveu 17 anos.

Reconhecendo que Teixeira de Pascoaes sofre de “um certo obscurecimento, não apenas de leitores, mas também canónico”, Feijó, que fez a comunicação inaugural do congresso de Amarante, vê no autor “um gnóstico que parte de uma fase inicial poética” para depois atingir “a prosa esplendorosa das cinco biografias” – S. Paulo (1934), S. Jerónimo e a Trovoada (1936), Napoleão (1940), O Penitente Camilo Castelo Branco (1942) e Santo Agostinho (1945) –, que “têm páginas nunca excedidas, em português, por qualquer autor”. Quem conhece a obra de Pascoaes, diz Feijó, “sabe que tem uma dimensão de modo nenhum inferior à de Pessoa”.

"Mestre incontestado" até 1915

Entre os vários motivos que contribuem para que este seu juízo seja hoje bastante minoritário, Feijó lembrou ao PÚBLICO a circunstância de Pascoaes ter estado “confinado durante décadas à filosofia portuguesa”, o que “limitou o âmbito da sua percepção”. Mas também aponta o facto de a sua dicção poética, tal como a de José Régio, “ser vista por muitos como datada, como se não tivesse existido o modernismo”. Um fenómeno mais frequente do que se pensa, argumenta, evocando o exemplo de uma conhecida antologia de poesia inglesa organizada em 1973 pelo poeta Philip Larkin, The Oxford Book of Twentieth Century English Verse, que “foi muito criticada por privilegiar John Betjeman, considerado um poeta menor, mas que Larkin explicava ser um poeta extraordinário, ainda que escrevesse como se Pound e Eliot não tivessem existido”.

Betjeman e Pascoaes têm em comum o facto de ambos terem sido muito lidos e apreciados no seu tempo. “Até à rebelião modernista em 1915”, escreveu Jorge de Sena, Pascoaes “foi o mestre incontestado da poesia portuguesa, que, como o público leitor, nele se reconhecia toda”. É por isso que “a figura com a qual Pessoa tem de se confrontar é Pascoaes”, defende Feijó, chamando a atenção para o célebre poema XXVIII de O Guardador de Rebanhos, no qual Alberto Caeiro ironiza com “os poetas místicos” que “dizem que as pedras têm alma”. “O alvo directo era Pascoaes, e ele percebeu-o muito bem”, prossegue Feijó, citando uma carta em que o poeta de Amarante observa a um amigo que os textos de Caeiro não chegam a ser poesia. E se hoje nos custa tanto a engolir a ideia de que Pascoaes possa ter sido instrumental na génese da heteronímia pessoana, também é porque se foi apagando a memória do grande prestígio nacional e internacional de que o poeta gozou em vida.

Lembrando “a recepção tremenda” que as biografias de Pascoaes tiveram na Holanda, Sofia Carvalho não duvida de que “as grandes mentes, em Portugal e no estrangeiro, reconheceram em Pascoaes o grande poeta que ele era”. O “grande desafio para o leitor de hoje”, diz, “é saltar da prosa para a poesia, ler as biografias e depois voltar ao Marânus, ao Regresso ao Paraíso, ao Duplo Passeio, percebendo que o sistema é sempre o mesmo”. 

Presente no encontro de Amarante, a poetisa e ensaísta brasileira Roberta Ferraz, que acabou de se doutorar com uma tese sobre Pascoaes, garante que o poeta “praticamente não é estudado no Brasil”, onde “é sempre visto como o poeta que Pessoa superou, como se tivesse parado de publicar em 1915”. Na sua tese, a investigadora privilegia “o Pascoaes escritor, tirando de cena aquela figura de cunho mais ideológico, movida por interesses culturais mais didácticos”, e procura ler a obra como “um grande romance, no sentido do primeiro romantismo alemão”. Um “romance da saudade”, conceito que, em Pascoaes, defende, estrutura não apenas uma visão gnóstica do mundo, mas “uma poética, um sistema de linguagem”.

Uma modernidade alternativa

Também o pessoano Jeronimo Pizarro não duvida da presença de Pascoaes na poesia de Pessoa, e levou a Amarante alguns documentos pouco conhecidos em que este último se refere ao poeta mais velho. “No início de 1913, depois de ter lido O Doido e a Morte, Pessoa está tentar escrever uma carta a Pascoaes, mas começa a falar dela em Fevereiro de 1913 e acaba por só a enviar em Janeiro de 1914”, conta o ensaísta colombiano. Os vários rascunhos dessa carta são apreciações literárias, diz Pizarro, mas quando ela finalmente chega ao seu destino, “já não é a carta em que Pessoa promete falar da alma de Pascoaes, não é uma análise da obra, é uma carta em que lhe dá os sentimentos pela morte do padrinho e pede desculpa por ter demorado tanto a agradecer o livro”.

Pascoaes “é a figura mais importante da poesia da época, e Fernando Pessoa quer ser o super-Camões, mas ao mesmo tempo está a tentar ser o super-Pascoaes”, defende Pizarro. Mas mesmo reconhecendo o tom da poesia pascoalina em muitos poemas de Caeiro, “e não apenas com intenção paródica”, o investigador sublinha, no entanto, que Pessoa e Pascoaes “são poetas muito diferentes, que foram leitores um do outro, e entre os quais nunca houve um grande reconhecimento mútuo, mas também nunca existiu um conflito directo”. Dos vários textos de Pessoa sobre o poeta mais velho (quase todos anteriores a 1915) que Pizarro comentou no congresso, o mais relevante é talvez o fragmento em que o autor da Mensagem define “em três traços” o poeta de Amarante: “Um misticismo altamente intelectualizado, uma sensualidade extrema irrealizando-se em imaginação religiosa, patriótica e messiânica, um instinto artístico intimamente subordinado ao misticismo fundamental do seu temperamento”, ajuíza Pessoa, comparando depois Pascoaes a Browning, isto é, “um grande poeta com grandes defeitos”. 

A proximidade deste congresso com as recentes comorações dos 150 anos de Raul Brandão, que escreveu uma peça de teatro a meias com Pascoaes, vem também dar uma nova nitidez a uma questão ainda pouco debatida: a de saber se o triunfo póstumo de Orpheu não nos impede de reconhecer uma outra modernidade, que passaria justamente por estes e outros autores. “Sem dúvida que há uma genealogia alternativa à do modernismo, que inclui Pascoaes e Raul Brandão, uma linhagem que passa depois também por Régio ou Agustina”, diz Sofia Carvalho. Pizarro está de acordo: “Não tenho nenhuma dúvida de que existe uma modernidade alternativa ao Orpheu, que está no Norte, em torno da Águia”. E as duas, acrescenta, não estão assim tão distantes uma da outra, embora “o nacionalismo paradoxalmente cosmopolita de Pessoa não se encontre completamente com o nacionalismo espiritualista e panteísta de Pascoaes”.

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