Do apartheid envergonhado à "Preta Fernanda": o rasto de África nas ruas de Lisboa

Visitas da associação Batoto Yetu Portugal querem colocar a história nestes termos: “No século XVI, cerca de 20% dos habitantes de Lisboa eram africanos.” Uma presença ainda visível nos espaços que frequentaram, moldaram e no que deram de si à cidade.

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NUNO FERREIRA SANTOS
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Chamava-se Andresa Nascimento. Nome que mudou para o “aportuguesado” Fernanda do Vale. Era por “Preta Fernanda” que era conhecida em Lisboa. Sai de Cabo Verde, onde nasceu em 1859, com um capitão português e chega a Lisboa com um alemão. Associada a casas de prostituição, os relatos de época destacam a sua independência e influência junto das elites. É referida como um ícone da capital galante e boémia da época.

É a sua figura que adorna o pedestal da estátua do marquês de Sá da Bandeira, na Praça D. Luís I, junto ao Mercado da Ribeira. Mesmo que lhe tenham sido “apagados os traços africanos”, Fernanda do Vale é ali símbolo da libertação dos escravos, com os pés acorrentados e uma criança ao colo, a apontar para o marquês obreiro da abolição da escravatura nas colónias portuguesas. É precisamente nesta praça que arranca a visita deste sábado pelos “espaços da presença africana em Lisboa”, organizada pela associação Batoto Yetu Portugal. Seguimos viagem de tuk tuk guiados por José Antunes, historiador da Lisbon Walkers.

Recuamos um século aos episódios de Lisboa que Fernanda do Vale contou na biografia Recordações d'uma Colonial, de 1912. A “indígena”, como foi referida numa portaria régia de 1880, viu-se representada no palco do Teatro do Príncipe Real e chegou a montar um cavalo na Praça de Touros de Algés. Morou em várias ruas do Bairro Alto e, diz-se, foi a única mulher que não abandonou a sala quando Almada Negreiros lia Ultimatum Futurista, em 1917.

Falar destas histórias é narrar episódios dos mais famosos lugares da capital, onde, ainda assim, José Antunes vê uma presença africana “quase sempre ignorada”.

Em Lisboa, “porventura a cidade europeia mais fortemente marcada pela escravatura”, José Antunes desenha a antiga rota dos escravos até à abolição da prática na metrópole, em 1761. No porto, “os escravos alombavam a carga dos navios para terra”. Chegavam, noutros dias, os tumbeiros (navios negreiros), onde eram os próprios escravos a desembarcar. Entre o Terreiro do Paço e o Largo do Pelourinho leiloavam-se os recém-chegados.

Neste período, os cadáveres dos escravos rapidamente se tornaram “um problema”. Apesar de muitos serem baptizados pelos seus donos, “não havia a preocupação de lhes dar uma morte condigna”. Facilmente, quem vivia na zona de Corpo Santo, São Paulo e Santa Catarina atirava os corpos pelos antigos barrancos lá existentes. Há, por isso, segundo o historiador, registos de legislação manuelina para a criação de um poço para colocar os cadáveres. Hoje, a Rua do Poço dos Negros.

Para o historiador, o Chafariz d’Rei, na parede do Palacete com o mesmo nome, é um símbolo “escondido de um apartheid social”. O chafariz, na sua versão antes do terramoto (o actual foi refeito no século XVIII), estava dividido em bicas para brancos e bicas para negros: “A água que os negros tocavam de modo algum se podia misturar com a dos senhores.”

Noutra condição, muitos dos “escravos do ganho” (que trabalhavam e ganhavam para pagar ao dono) eram pescadores. Estes “tinham a mesma influência no mercado do peixe de Lisboa como qualquer outro comerciante”. Para José Antunes, não deixa de ser curioso que, “até aos anos 80, ainda houvesse mulheres africanas que vinham ao Mercado da Ribeira buscar peixe e para levar a casa de clientes”.

A escravatura “não era muito fácil de encaixar”

Grande parte dos relatos “desta africanidade de Lisboa” são descrições de estrangeiros que visitaram a capital na época.

Para estes estrangeiros, principalmente da Europa do Norte, a escravatura “não era muito fácil de encaixar”. “Não a escravatura em si”, o que chocava era a dimensão. Onde hoje é a Madragoa, foi criado no final do século XVI o Mocambo, onde viviam os escravos alforriados ou “escravos do ganho”. Damião de Góis referiu-se às “casinhas dos africanos” deste bairro, construído naquele local dada a proximidade aos conventos e aos fornos de tijolo, onde era necessária mão-de-obra. Este bairro era caso único em Lisboa e “algo de extraordinário em comparação com o resto da Europa”.

Havia quem se referisse à cidade do século XVI como “um tabuleiro de xadrez”. Não terá sido bem assim: “Um rácio de 50-50 nunca terá existido, mas podemos ter tido uma população negra de cerca de 20% do total.” A maioria escravos, mas também libertos ou pessoas que nunca entraram no ciclo da escravatura. “Há vários relatos de proprietários, principalmente mulheres, de casas em Lisboa”, conta José Antunes, referindo-se às casas de aluguer da Rua das Pretas, que ainda mantem o nome.

Com o final da escravatura na metrópole, a presença africana na capital “dilui-se”. Retoma durante o Estado Novo, pelo contacto facilitado com as colónias. E com o final da guerra da colonial, os retornados: “havia muitos africanos integrados nas estruturas do regime e pessoas que temiam guerras civis. Há uma grande leva de gente que vem para cá” – fenómeno que justifica “grande parte da presença africana das últimas duas ou três gerações”, afirma o historiador.

Eleger, em Lisboa, os reis do Congo

Sabemos da presença africana desde a escravatura aos retornados, mas como se perpetuou na cidade? José Antunes fala de imediato da “memória de uma boémia africana que ainda existe”. Refere-se à casa da “senhora da cachupa”, um prédio no final da Rua do Poço dos Negros onde, “até há poucos anos” se comia e dançava. Refere-se ao B.Leza, quer ao antigo no Palácio Almada Carvalhais, quer ao novo espaço no Cais do Sodré, onde se cruzam artistas da lusofonia, em especial de Moçambique e Angola.

“Mesmo o facto de ouvirmos Quizomba em qualquer lado não é um movimento isolado. A presença das influências africanas foi-se perpetuando e é evidente que foi popular em vários momentos”, acredita o historiador. Mostra o recorte do anúncio do Baile de Negros de 1730, “festividades que não eram só para os africanos”. Graceja com a eleição do Rei e da Rainha do Congo (não literais), “um motivo de festa”, da qual os monarcas portugueses chegaram mesmo a participar, no século XIX.

A viagem segue para situar a religião nesta história: Igreja da Graça, Campo de Mártires da Pátria e Igreja de São Domingos. Foi nesta igreja, junto ao Rossio, que nasceu, no século XV, e se perpetuou até ao final do século XIX o culto àquela que ficou conhecida como a Nossa Senhora dos Pretos de Lisboa, Nossa Senhora do Rosário.

Os peditórios religiosos que a invocavam eram cantados e dançados. “Era a música, a dança, o colorido da africanidade que surpreendia e fascinava Lisboa”, ilustra o historiador.

Uma realidade que o historiador vê pouco retratada na literatura portuguesa. Uma ou outra referência de Camões, Bocage e de Gil Vicente. “Mas o africano era retractado de uma forma muito estereotipada. Estereótipo iguais aos actuais” que, na sua opinião, não reflectiam uma presença que ocupava diferentes papéis na sociedade e cuja influência teve impacto directo na história do país.

É esta “pluralidade de memórias e de vestígios, uns mais visíveis que outros” na cidade que a visita quer dar a conhecer. Os percursos variam e podem ser feitos a pé, de carrinha ou tuk tuk, guiados pelos historiadores Isabel Castro Henrique e José Antunes. Realizam-se todos os meses ou mediante marcação.

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