A garagem

As meias rotas. O batom desalinhado. O rosto sofrido. O corpo curvado. Pobre morre pobre

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Adriano Miranda

Ali não há mesa. Nem toalha de pano. Não há cadeira. Nem tapete. Não há talheres de metal. Nem prato de porcelana. Ali. Ali não é sala nem cozinha. Marquise ou copa. Ali é uma imensa garagem com chão de cimento e nódoas de óleo. Traços amarelos e tubos de ferro ao alto. Frio, muito frio. Sem vidros nem janelas. Cobertura de chapa. A fila é gigante. O Manuel, a Rosa, o Pedro, a Joaquina, o preto, o branco, o cigano, o indiano, o coxo, o desdentado, o velho, o novo, o desempregado, o agarrado, a puta, o licenciado e, o mais doloroso, a criança. Esperam e esperam. Batem os pés no cinzento frio, bufam ar quente dos pulmões nas mãos em concha, conversam alto, outros em silêncio. Quase não existem risos. Só no canto, bem no canto, quase escondidos de tamanha vergonha, as crianças brincam e riem numa inocente espera.

São um batalhão naquela garagem. Esperam por comida. Comida quente. Feijoada. Não importa o sal ou o feijão. Ou a mão da cozinheira. Importa que está quente. Importa comer. Comer é meramente um acto mecânico para não desfalecer. Pobre não sabe o que é prazer. Pobre morre aos poucos. Morrem as economias. O agasalho vai ficando desbotado. O cabelo oleoso. As meias rotas. O batom desalinhado. O rosto sofrido. O corpo curvado. Pobre morre pobre.

Voluntários de colete verde fluorescente distribuem pão, outros bolachas, outros água. Parecem robots, ritmados, cadenciados, organizados. Quase sem tempo para um afecto. Talvez o maior afecto vá na concha da feijoada. Mais à frente outra fila aparece. Roupa, roupa usada. O que importa se aquece. Mais coletes verdes fluorescentes. Essa serve. Fica-lhe bem. Hoje não temos. Procure para a semana. Naquela boutique de chão de calçada não existem provadores ou talões de troca. Existe necessidade e frio. A vaidade não mora ali.

Sobre as luzes dos candeeiros públicos, o circo da vida está ali. Bem à frente para quem quiser ver. A corda está esticada. A da vida. Eu, tu, o amigo, o vizinho, o colega, a tia, podemos cair deste equilíbrio débil. Somos todos, a grande maioria, equilibristas que nos mantemos na corda, ou seja, no fio da navalha. A garagem está cheia de equilibristas já tombados. E depois, os pançudos, os donos da corda, discutem SMS, salários milionários, défice e offshores.

Carla ri-se para mim e diz “pode fotografar, eu não tenho vergonha”. Endireito a máquina fotográfica e disparo uma vez. Uma só vez. Agradeço e desejo felicidades. Carla ri-se. Simpática e desiludida. Senti vergonha, não da Carla mas de mim. Sou um cobarde porque devia ter forças para fazer mais. A minha cozinha tem mesa e toalha de pano.

Não existe liberdade quando o estômago é prisioneiro de uma garagem.

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