Um homem tigre a tentar desaparecer na vastidão americana

How to Become Nothing é o filme sobre alguém em fuga. Rodado no deserto americano, tem Paulo Furtado como protagonista. Foi o mote para tudo o que Furtado nos trará em 2017. Uma longa-metragem, filmes-concerto, dois discos e um livro. Estaremos sempre de olho no homem que quer desaparecer.

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FOTO: Rita Lino

Há um homem em fuga. De que foge, não sabemos exactamente. Aliás, à medida que o filme avança, tornar-se-á cada vez menos importante saber que motivou aquela fuga. O homem que avança pelo deserto, que encontra mulheres com quem não trocará uma palavra, que passa noites atribuladas em motéis, que cava a sua sepultura em Death Valley, antes de seguir novamente auto-estrada fora, quer desaparecer. Completamente. O homem no ecrã é Paulo Furtado, Legendary Tigerman, e How To Become Nothing é o filme que rodou com o casal Pedro Maia e Rita Lino, radicado em Berlim, ele realizador, ela fotógrafa, nas estradas áridas da América.

How To Become Nothing, ou melhor, a viagem que  o motivou a nascer inesperadamente, é o centro a partir do qual se desenvolverá a actividade Tigerman em 2017. Há o filme, longa-metragem que rodará no circuito de festivais e em sala. Há o filme-concerto em que Tigerman actua perante as imagens que Pedro Maia manipula em resposta à música (espectáculo estreado no último Curtas de Vila do Conde e que será apresentado 28 de Janeiro no Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria, a 4 de Fevereiro no gnration, em Braga, seguindo-se Ovar, a 9 de Março, Faro, a 11 de Março e Torres Novas, dia 1 de Abril, estando para breve o anúncio de mais datas em Portugal e no estrangeiro). Haverá dois discos, a banda-sonora do filme e o sucessor do muito celebrado True, com edição marcada para Setembro. Antes disso, será também lançado um livro em que as imagens da dupla Maia/Lino e os textos de Furtado oferecem mais uma camada de leitura a este multidisciplinar How to Become Nothing.

Tudo nasceu de um desejo e de um encontro com “o livro mais estúpido do mundo”, conta Paulo Furtado ao Ípsilon numa das cafetarias da Gulbenkian, em Lisboa, pouco dias depois de ter completado o habitual ciclo de concertos natalícios na Galeria Zé dos Bois. O livro é How To Disappear Completely And Never Be Found e foi originalmente publicado em 1985 (ali encontraram os Radiohead inspiração para How to disappear completely, de Kid A, e, em 2005). Nele, Doug Richmond explica em pormenor como criar uma nova vida e a partir do zero, assumindo um novo nome e uma nova existência - incluindo a escolha criteriosa, quanto à idade e aparência física, do pobre morto a quem se “roubará” a identidade. “O livro é completamente idiota, se bem que talvez seja útil para quem quer desaparecer do ponto de vista financeiro e estrutural do mundo real, mas teve a vantagem de ser o ponto de partida para uma ideia maravilhosa”. A ideia de desaparecer, não no sentido físico. “Um desaparecer onírico, surreal”, que seja manifesto de uma impossibilidade: “Hoje, é-nos impossível desaparecer totalmente. O rasto digital persegue-nos e é impossível apagá-lo”.

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Zabriskie Point, o filme de 1970 de Antonioni, ou Paris Texas, que Wim Wenders estreou em 1984, são referências assumidas por Furtado, Pedro Maia e Rita Lino Foto: Rita Lino

How to Disappear Completely definiu um rumo, mas a história começara antes. Furtado queria gravar um novo álbum enquanto Legendary Tigerman, mas não queria repetir-se. “Às vezes tens que arranjar uma forma qualquer que torne plausível e excitante gravar mais um disco”. Não queria repetir a experiência  do “super autobiográfico True”, o seu quinto longa-duração. “Apeteceu-me criar toda uma outra história que está muito ligada ao cinema, o que não é inocente, porque eu próprio também me sinto cada vez mais ligado ao cinema. Tive que virar tudo ao contrário para ter vontade de fazer um novo disco”. Ele que se prepara para rodar, em Março, uma curta, Amor Quântico, definiu que seriam as imagens e desencadear o nascimento da música. Imagens de um homem a tentar desaparecer na paisagem do deserto americano, imagens que denunciam, inevitavelmente, um olhar europeu sobre o Novo Mundo. Não por acaso, Zabriskie Point, o filme de 1970 de Antonioni, ou Paris Texas, que Win Wenders estreou em 1984, são duas referências óbvias e assumidas por Furtado, Pedro Maia e Rita Lino. Europeus a observar esse enigma, tão próximo e tão distante, que é para eles os Estados Unidos.

“Os europeus têm uma forma muito peculiar de filmar a América e tudo parte desse imaginário fantástico que construímos desde muito cedo”, destaca Paulo Furtado. Fala então da “imensidão do espaço”, das “estradas onde podemos guiar durante dias sem que nos apareça uma curva” - “essa dimensão faz-te pensar muitas vezes que tudo é realmente possível”. Acto contínuo, abandona a paisagem para mergulhar mais fundo na gigantesca comunidade americana. Destaca, por um lado, uma curiosidade “muito maior pelo outro que na Europa”: “Se estiveres sozinho num café, é muito provável que a pessoa que está ao teu lado venha meter conversa contigo. Daí nascem diálogos que não sendo sobre questões importantes ou relevantes - na América discute-se muito coisas banais -, parecem próximos dos que Taratino escreve para os seus filmes”. Fala-nos também daquilo a que chama “a realidade em relação ao fatalismo”: “Na Europa, se uma aldeia no meio da serra começa a ficar desabitada, o nosso coração dispara e começamos a chorar. ‘Temos que salvar os 10 velhinhos que lá estão’. Na América não querem saber. Os dez velhinhos vão morrer e, quando o último morrer, morreu. A vida é deixada a si mesma. Isso tem obviamente muito de mau mas, ao mesmo tempo, tem uma componente quase poética muito forte”. Não é por acaso que o personagem interpretado por Paulo Furtado foge. Não é por acaso que caminha e caminha sem conseguir fugir realmente. “Todo o lado surreal do filme, acaba por não o ser tanto. A parte da chegada ao motel, a do sexo oral, do anão mexicano e do dealer aconteceu mesmo, naquela sequência. Isso é muito engraçado na América, a forma como a ficção e a realidade se misturam sem que a realidade fique a dever alguma coisa à ficção”. How to Become Nothing reflecte-o. “Eu não sou propriamente actor, a Rita não é propriamente actriz. Há aqui um processo que é muito emocional, muito experimental, e que decorre da própria viagem e da improvisação ao longo da viagem”.

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FOTO: Rita Lino

Frankenstein de volta a casa

No início havia duas certezas. Que os Estados Unidos, em particular as zonas de deserto na Califórnia, seriam o destino. E que Furtado viajaria até lá com Pedro Maia e Rita Lino. Trabalhara no passado com Pedro, que realizou um vídeo em Super 8 para Someone burned down this town, de Masquerade, álbum de 2006. Quanto a Rita, cujo trabalho auto-referencial, onde o corpo emerge como biografia e exposição questionadora, Furtado já a tinha debaixo de olho há algum tempo. “Tenho acompanhado o trabalho dela, tenho os dois livros que editou até ao momento [All the Lovers, Sauna, 2012; Entartete, Éditions du Lic, 2015), e sempre achei que, pelo imaginário e pelo lado mais pessoal, podia ser uma mais-valia para Legendary Tigerman” - Rita, além do trabalho fotográfico, é também actriz em How to Become Nothing.

Os quartos de motel, os diners, igrejas irrompendo no meio do deserto, as auto-estradas em linha recta até perder de vista, as cenas de sonho tripado e os corpos nus entregues a fantasmagorias, assombrações que o protagonista acolhe no seu mundo. A voz off de Paulo Furtado, em registo diarístico, pensamentos libertados para o gravador, a fazer avançar a narrativa. Quando aterrou nos Estados Unidos, não era isto que tinha em mente. A ideia seria ir filmando e improvisando ao sabor dos dias e do trajecto, sem saber o que dali sairia - um vídeo para uma futura canção ou uma curta eram as hipóteses mais prováveis. “Mas depois tudo evoluiu de forma descontrolada”. A primeira montagem de Pedro Maia tinha 58 minutos e Furtado sentiu que havia ali uma longa-metragem à espera de nascer. O realizador Rodrigo Areias sentiu o mesmo e passou a envolver-se mais directamente na produção, através da sua produtora, a Bando à Parte. O filme seria completado com a rodagem de algumas cenas de interiores em Berlim.

Nos Estados Unidos, Paulo Furtado levantava-se todos dias às 7 da manhã para escrever o seu diário. Às 8h30, enviava o texto a Pedro Maia e Rita Lino, no quarto ao lado. Depois, o trio reunia-se e partia estrada fora, seguindo o guião definido na manhã e a rota definida previamente, mas deixando espaço aberto para que a realidade se intrometesse. De noite, terminadas as filmagens, Furtado voltava a ser músico e dedicava-se a compor o álbum que gravou em Dezembro último no estúdio Rancho de La Luna, em Joshua Tree, Califórnia. O álbum de um homem, Legendary Tigerman, que pôde por fim confrontrar-se com o seu criador. A analogia é do próprio Furtado. Conta-nos de uma conversa recorrente com um amigo que o aconselhava a ir gravar aos Estados Unidos. Para Furtado, isso não era, não podia ser, uma possibilidade. “No máximo poderia ir a África, para perceber como reagiria à mistura com tipos de blues que não fossem uma influência tão grande para mim. Estava a distanciar-me daquele universo e a criar uma linguagem muito influenciada pelo blues e pela América mas que, ao mesmo tempo, tentava desconstruí-lo”. Agora sim, era tempo de se confrontar com a fonte da sua música. “É como se o Frankenstein voltasse a casa para ver o laboratório onde foi criado”, compara.

A julgar pelas reacções no estúdio por onde já passaram Queens Of The Stone Age, Iggy Pop, Victoria Williams ou Arctic Monkeys, o timing foi nada menos que o adequado. “Ao terceiro ou quarto dia, o técnico residente do estúdio fez-me a melhor pergunta: ‘O que é que vocês chamam a esta música?’. Não sabia bem onde enquadrar aquele som. Percebi que, nestes anos todos, tenho seguido um caminho que, dentro dos seus erros de percurso, está correcto”. O novo álbum foi gravado com Paulo Segadães (bateria) e João Cabrita (saxofone), habituais companheiros de palco, tem como convidado em duas canções Dave Catching (guitarrista com Queens Of The Stone Age ou Eagles Of Death Metal no currículo e co-fundador do Rancho de La Luna) e terá como co-produtor Johnny Hostile, produtor das Savages e que, quando actuava com a vocalista daquelas, Jehnny Beth, no duo John & Jehn, chegou a partilhar a estrada de digressões com Legendary Tigerman. Apesar de a composição do novo álbum ter acontecido enquanto decorria a rodagem do filme, “musicalmente” não há qualquer relação entre ele e a banda-sonora de guitarras em lenta reverberação. “Seguiu totalmente noutra direcção. Mais experimental, creio, mais gutural. Isto um dia há-de eventualmente ficar tudo ligado”, sorri. Já está.

Teremos os filmes-concerto, o filme ele mesmo, um livro, a edição da banda-sonora e do novo álbum. E, enquanto vemos o homem que quer desaparecer no deserto americano caminhando sem destino, assombrado por fantasmas e obsessões, olhamos para trás e reencontramo-lo. Foi logo no início. Estávamos em 2002 e Legendary Tigerman editava o álbum de estreia, Naked Blues. No vídeo para a canção homónima, o sexo, o álcool e o jogo eram o combustível para o início da fuga. O fim mostrava Legendary Tigerman caminhando sem destino numa estrada de terra sem curvas. Sim, isto já está tudo ligado. 

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