Tem mais de 450 anos, foi escolhida pelo rei e é uma “prenda especial”

A Parques de Sintra anunciou esta quarta-feira ter comprado um salva de prata dourada do século XVI que pertenceu à colecção de D. Fernando II. Foi feita em Lisboa e é uma “peça extraordinária” do Renascimento português.

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Salva em prata dourada feita em Lisboa e com a data de 1548 Cortesia: João Krull/Parques de Sintra

D. Fernando II, já se sabe, era um rei de uma cultura excepcional, um amante das artes nas suas mais diversas manifestações. A sua colecção, em boa parte hoje à guarda de instituições como o Museu Nacional de Arte Antiga e o Palácio Nacional da Ajuda, é o reflexo do gosto de um homem informado e com dinheiro, sempre atento a qualquer oportunidade de enriquecer o acervo que foi reunindo com entusiasmo ao longo da vida.

Na sua colecção, além da pintura, claro, destaca-se um riquíssimo conjunto de ourivesaria civil de aparato dos finais do século XV, começo do XVI, a que o seu filho D. Luís I daria continuidade e que o historiador de arte Nuno Vassallo e Silva considera ser o melhor do mundo no seu género. É precisamente este especialista que agora vem classificar como “extraordinária” a salva em prata dourada do século XVI comprada pela Parques de Sintra, a empresa que gere a paisagem de Sintra classificada como património mundial.

Num comunicado divulgado esta quarta-feira à tarde, a empresa que tem à sua guarda os monumentos mais importantes de Sintra, alguns dos mais visitados do país, informa que a peça recentemente adquirida, feita numa oficina lisboeta em 1548 (a data está gravada), fez parte das colecções de D. Fernando II (1816-1885), marido da rainha D. Maria II, e que saiu do país após a morte do monarca porque coube em herança a uma das suas filhas, D. Antónia, que vivia na Alemanha. A salva renascentista reapareceu em 2012 num leilão em Londres, tendo sido então comprada por um antiquário português que haveria de a vender à Parques de Sintra, que agora vai inclui-la no acervo do Palácio da Pena, cuja construção se deve ao rei.

O nome do antiquário e o valor pago pela peça não foram divulgados: “A Parques de Sintra não dá a conhecer esses dados porque a venda não foi pública”, disse ao PÚBLICO Susana Quaresma, do gabinete de comunicação da empresa. “Não o fazemos porque se trata de uma transacção com um privado e feita em privado.”

“Esta é uma prenda muito especial que a Parques de Sintra dá ao património português”, diz Vassallo e Silva, historiador de arte que tem dedicado boa parte do seu trabalho de investigação à ourivesaria portuguesa. “É uma peça muito, muito importante do nosso Renascimento, com uma riqueza iconográfica imensa e muitíssimo bem executada”, acrescenta este especialista a quem se deve o livro Ourivesaria Portuguesa de Aparato – Séculos XV e XVI (Scribe), onde a salva aparece publicada. “Vê-la regressar a Portugal é muito bom e poder vê-la na Pena é uma festa.”

Lembra Vassallo e Silva que não há colecção de ourivesaria civil deste período que se compare à reunida por D. Fernando II e D. Luís I – “talvez a segunda melhor do mundo seja a do Museu Victoria & Albert, de Londres” – e que a produção dos ourives de Lisboa deste período era exímia. “A ourivesaria civil portuguesa do século XVI é muito característica e é muitíssimo valorizada em termos internacionais desde o século XIX. Peças como esta são muito apetecíveis para colecções públicas e privadas.”

A valorização desta produção portuguesa, “restrita”, deve-se ao facto de, no final do gótico e no início do Renascimento, lhe ser reconhecida uma “identidade própria”. “Nestas salvas de aparato, com um carácter celebrativo muito evidente, há uma liberdade imensa nos temas e no tratamento desses temas. Há nelas alegorias e situações várias, às vezes até um pouco misteriosas. Salvas como esta são histórias passadas a prata.”

Vassallo e Silva garante que nas colecções portuguesas – sobretudo na Ajuda, mas também em Arte Antiga – há peças semelhantes de grande virtuosismo e excelência, “com a mesma linguagem”, mas nenhuma com o programa iconográfico desta. “É uma peça única que o próprio rei, muito provavelmente, terá escolhido, comprando-a a uma família nobre portuguesa que a terá conservado durante centenas de anos, como aconteceu com a maioria das outras que hoje fazem parte das colecções reais portuguesas. É preciso estudá-la para sabermos mais.”

O programa iconográfico da peça precisa de ser detalhado, sublinha o historiador, identificando nela duas figuras masculinas e duas femininas – em “quatro medalhões muito próprios da linguagem renascentista e muito parecidos com os dos pórticos das igrejas” –, caçadores, uma fonte com um leão e um unicórnio, e muitos outros animais fantásticos.

Apoiando-se num “estudo recente”, a Parques de Sintra diz no seu comunicado que a referida salva em prata dourada terá sido feita a pensar num casamento e que os quatro medalhões a que o historiador de arte se refere representam dois casais: os noivos e Hermes e Afrodite, o deus mensageiro e a deusa do amor.

Vassallo e Silva diz que esta é uma interpretação possível, mas não a dá como definitiva. Certo é que a peça integrou o lote de obras de D. Fernando patente na Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola, que se realizou em Portugal em 1882, inspirada noutra feita um ano antes em Londres, no museu que viria a dar origem ao actual Victoria & Albert (chamava-se South Kensington Museum). “A exposição de Lisboa de 1882 é o embrião do Museu Nacional de Arte Antiga e esta salva estava lá.”

A “prenda especial” para o património português de que fala Vassallo e Silva chega com o Natal à porta e o aniversário quase no fim – em 2016 festejaram-se os 200 anos do nascimento de D. Fernando II, o rei-coleccionador.

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