A Europa ou se salva unida ou não se salva

O euro ajudou a dividir a Europa e a união política saiu da agenda.

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1. Há menos de um mês, a pergunta era: poderia a Europa sobreviver a Donald Trump? Hoje, basta mudar o tempo do verbo: pode a Europa sobreviver ao sucessor de Obama? As notícias da Trump Tower são contraditórias, mesmo que hoje já ninguém acredite na tese segundo a qual o hábito faz o monge. O secretário da Defesa, cuja alcunha nos faz lembrar o Apocalipse Now (Mad Dog), é afinal, escreve o New York Times, um defensor da cooperação com os aliados. Antes assim. A grande incógnita continua a ser a escolha do responsável pela política externa. Parece difícil encontrar alguém que goste de Putin tanto como o Presidente eleito. Todos os dias há uma surpresa. A última foi o telefonema de Trump à sua homóloga de Taiwan, Tsai Ing-wen, quebrando um protocolo estabelecido desde 1979 entre Washington e Pequim. Xi Jinping acusava a Administração Obama de querer interferir na Ásia-Pacífico para conter a influência chinesa. No longo prazo, uma retirada americana é-lhe altamente favorável. No curto, a diplomacia de Trump pode provocar grande instabilidade, algo que a China não quer.

2. A Europa é provavelmente a região do mundo onde a eleição de Trump se reflecte da forma mais dramática e mais imediata, pondo em causa a sua própria sobrevivência sem o cimento aglutinador dos Estados Unidos. Em 1990, Jacques Delors disse uma frase que se tornou célebre: “Estamos a assistir a uma súbita aceleração da História”. Queria dizer que a Comunidade Europeia tinha de se adaptar rapidamente para uma brusca ruptura na geografia política europeia, que se preparava para enterrar a ordem de Ialta. Era o pontapé de saída para Maastricht, definindo uma estratégia que passava, primeiro, por amarrar a Alemanha unificada à Europa através do euro, para depois criar as condições do alargamento da União Europeia até às fronteiras do continente.

Podemos hoje dizer exactamente o contrário: a Europa está a viver uma súbita reversão da História. Conseguiu mal ou bem sobreviver a George W. e à maior crise de sempre da aliança transatlântica com a guerra no Iraque. Obama, apesar da sua opção inicial pelo Pacífico, permitiu-lhe voltar a acreditar numa aliança inquebrantável perante a crescente desordem mundial. Agora, a Europa vai ter de enfrentar, pela primeira vez, o seu futuro sem a confortável garantia americana. O problema maior é que não podia estar menos preparada para o fazer. Antes de Trump, a sua própria crise ajudou a alimentar uma vaga de populismos e de nacionalismos absolutamente inesperada pela sua dimensão e pela sua rapidez. Apesar das variações nacionais, tinha em comum a rejeição da Europa, da globalização, das elites politicas, dos “outros” que vinham de fora. O New York Times chamava a atenção para uma obra muito recente de John Judis, escritor e jornalista americano, cujo título não podia ser mais adequado: “A Explosão do Populismo – como a Grande Recessão transformou a política americana e europeia”. A Europa dos últimos seis anos arrasta consigo a carga das políticas de austeridade que provocaram verdadeiros desastres sociais nos países do Sul, abrindo feridas que estão longe de estar curadas. A crise dos refugiados foi o derradeiro e eficaz argumento dos partidos populistas e nacionalistas para envenenarem o debate político e porem em cheque os governos nacionais, incapazes de se entender sobre uma estratégia comum.

3. Em Roma, em Bruxelas ou em Berlim, os analistas fazem as contas sobre o impacte económico e político de uma eventual derrota de Matteo Renzi no referendo que convocou para este domingo sobre as reformas políticas que fez aprovar no Parlamento. Também hoje, a Europa pode assistir à primeira eleição directa de um Presidente de extrema-direita. Não é tanto o que ele possa fazer. É, sobretudo, o sinal definitivo da “implosão do centro”. Os dois partidos que governaram a Áustria durante a Guerra Fria e praticamente até agora, tiveram, em conjunto, pouco mais de 20% dos votos na primeira tentativa de eleger o Presidente (22 de Maio), que é repetida hoje e que se trava entre o candidato de extrema-direita e o dos Verdes.

Na véspera deste fim-de-semana de alto risco, François Hollande saiu de cena, mesmo que tenha de ficar no Eliseu até Maio do próximo ano. Disse que renunciava a um segundo mandato para não dividir ainda mais a esquerda. Acto de lucidez ou de fraqueza? Os socialistas sobreviverão ao seu Presidente? Ninguém sabe. Podem escolher o mesmo destino do Labour, elegendo um Jeremy Corbyn que fale francês? Podem. Arnaud Montebourg, líder da ala esquerda do PS, que se afastou a tempo de Hollande, pode ganhar as primárias. Nos próximos meses, a França entrará no estaleiro de onde só sairá em Maio de 2017.

4. Voltemos à sobrevivência europeia. A vitória de Trump foi saudada pelos partidos populistas e nacionalistas europeus que se identificam com ele como um sinal para o futuro. Se lá é possível, por que não cá? Mas talvez o sintoma mais perigoso no médio prazo para o futuro de uma Europa sem protecção americana sejam as sucessivas “vitórias” de Putin. Saudou a eleição de Trump, intensificando os bombardeamentos em Alepo. Com a Síria, passou a dispor de uma “via verde” para estabelecer uma presença decisiva no Médio Oriente e chantagear à vontade os países ocidentais. Com a escolha de François Fillon, vai (talvez) assistir de bancada a uma segunda volta entre dois candidatos que, por razões diferentes, cultivam as boas relações com Moscovo. É impossível esquecer o que Fillon disse na campanha das primárias: que o alargamento da NATO foi uma “provocação” a Moscovo e que a Crimeia é comparável à independência do Kosovo. “Fillon colocará Moscovo à frente de Berlim?”, pergunta Camille Pecastiang da John Hopkins. “É difícil de acreditar”. Mas vai ser muito mais difícil manter a Europa unida, condição indispensável para dissuadir qualquer aventura de Moscovo.

5. A instabilidade nas suas fronteiras obriga os europeus a olhar com outra atenção para o seu pilar de defesa. A entrada em cena de Trump vai também obrigar a Europa a pagar mais pela sua própria defesa, correndo o risco de ver a NATO sair das prioridades de Washington. Mas como? Quando, em 1991, os europeus decidiram a sua união monetária, acreditavam que o euro levaria inexoravelmente à união política, confirmando o método funcional que regeu a integração desde o seu início. Hoje, já se percebeu que esta regra de ouro deixou de funcionar. O euro ajudou a dividir a Europa e a união política saiu da agenda. A mesma lógica anima alguns líderes europeus, que vêem na defesa comum o passo seguinte para contrariar o risco de implosão e forçar uma política externa e de segurança europeia. Merkel está de acordo. Fillon, aparentemente, também. Boris Johnson já declarou que o seu governo não se oporá, depois de ter dito exactamente o contrário algumas semanas antes, defendendo a NATO contra qualquer veleidade europeia neste domínio. Depois, chegou Trump. De novo, a questão é saber se a defesa induz convergência ou ainda mais divisão. Para já, apenas se pode prever um compasso de espera. A França estará paralisada até Maio. A Alemanha só em Setembro saberá se Merkel conquista o seu quarto mandato. A sua reeleição parece, cada vez mais, a tábua de salvação a que os europeus ainda se podem agarrar, apagando até as fronteiras políticas. Porquê? Porque ela não cede nem ao populismo, nem a Putin. A única “estratégia” que resta é esperar que nada aconteça de irreversível até às eleições alemãs. Até lá, é fundamental que os governos europeus percebam que a Europa, ou se salva unida, ou ninguém se salvará.

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