Espelho meu, há alguém mais belo do que eu?

A irritação provocada pelo manifesto de Jorge Sampaio vai aumentando de tom, só por ter assinalado que o rei europeu vai nu. E, enquanto a direita se entretém a festejar Trump – ou a pensar como o deve imitar, veja-se a França –, no centro a resposta é simplesmente reafirmar uma razão histórica transcendente como uma certeza religiosa. Parece que para alguns tudo vai de repetir a sua crença democrática e sentar-se como um soba à espera da vénia dos súbditos.

Há nisso uma arrogância que não se esconde. Escreve Santos Silva em resposta a Sampaio: “Quando o credo básico de uma democracia simultaneamente liberal e social deixou de ser óbvio, é preciso explicitar o óbvio”. Reforça imediatamente Sousa Tavares, também contra Sampaio: “Não é preciso reinventar democracia alguma, é preciso é explicá-la às criancinhas e aos ignorantes”. Ou ainda, acrescenta Sousa Tavares: a ameaça de Trump “só pode ser derrotada pela crença na superioridade dos valores democráticos e pela sua constante afirmação”. Temos portanto a receita, explicar o “credo” e o “óbvio” às “criancinhas e aos ignorantes”, tudo assente na “crença na superioridade” do que defendemos.

O que assim nos dizem é que, na emergência, basta repetir tudo gritando mais alto sobre a nossa “superioridade” (para as “criancinhas e os ignorantes” perceberem). É desastre garantido e até dá pena. Receio que os profetas do centro não percebam que a sua “superioridade” foi bem escassa e que há uma generalizada desconfiança sobre tal artefacto. Afinal, alguém se lembra que os ditadores da Tunísia e do Egipto eram membros da Internacional Socialista ou que o MPLA ocupa uma sua vice-presidência ainda hoje? Não ficamos mal servidos de “superioridade dos valores democráticos”. Alguém se lembra que a Grécia foi destroçada por uma aliança entre Merkel e Hollande, impondo por exemplo que os desempregados deixem de ter acesso ao serviço público de saúde? Nada mal, quanto a “superioridade”. Alguém se lembrará que Orbán faz parte do selecto partido europeu de Passos Coelho e Assunção Cristas e que recomenda que se dispare sobre os refugiados – disse “superioridade”? Juncker, primeiro-ministro de um offshore, e Barroso na Goldman Sachs, é mesmo de “superioridade” que querem falar?

Ora, foi a auto-satisfação destes dirigentes que se consideram “superiores” que ajudou a lenta e sofrida desagregação europeia. Foi a atitude do soba, do “superior”, que permitiu que os países periféricos fossem tratados como tapetes (o comissário alemão que propôs a obrigação da Grécia e Portugal colocarem a bandeira a meia haste enquanto tivessem dívidas vai ser promovido). Pior ainda, foi ela que ignorou sistematicamente a democracia, evitando que os povos se pronunciassem sobre os tratados ou impondo escolhas estratégicas desastrosas.

E, dez anos depois de ter começado a crise financeira e quando os bancos são resgatados com generosidade milionária, há quem se pergunte qual é o sentido desta economia de fingimento. O nosso regime está todo resumido na pesporrência dos administradores da CGD que, ganhando mais do que o presidente dos EUA, ficam melindrados quando se lhes pede registo de interesses. Não é de espantar que as “criancinhas” achem isto esquisito, pois não?

As respostas surgem à esquerda, ao centro e à direita e são contrárias, mas ninguém pode esconder o mal-de-viver. Responder a tudo isto com o “credo” e a “crença” que são enfastiadamente explicados “aos ignorantes” é o mesmo que continuar a perguntar ao espelho mágico se existe alguém mais “superior” do que eu. O problema é que existe mesmo. A minha sugestão a quem preza a democracia é só esta: não confie no seu espelho e preocupe-se com as outras pessoas.

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