Banalidade do ódio

É urgente consciencializarmo-nos de que somos facilmente e naturalmente influenciados por discursos radicais e motivados pelo ódio e pela hostilidade. É urgente sinalizar estes comportamentos para evitar uma banalização e legitimação generalizada do ódio

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A banalização de um discurso motivado pelo ódio e/ou pela hostilidade dirigidos à diferença (o quer que se entenda como “diferente”) foi levianamente reforçado numa campanha (e eleição) para aquele que é tido como o exemplo democrático ocidental. Deste lado do oceano chegam-nos mais exemplos de uma clivagem com princípios fundamentais conquistados e tomados como imutáveis — basta atentarmos para fenómenos como os argumentos usados na campanha a favor do Brexit, a escalada da direita radical em França ou a mais recente ascensão meteórica de um populista de extrema-direita nas sondagens italianas. Mas afinal por que motivo discursos discriminatórios, especialmente censuráveis do ponto de vista dos direitos fundamentais (perversos arrisco até a dizer), estão a ser banalizados e até em certos casos legitimados através do poder instituído pelo regime democrático?

As abordagens na análise e explicação deste fenómeno facilmente recaem na insatisfação com o “sistema” político actual.  Numa análise política/histórica, a banalização do ódio, dos discursos extremistas e subjugação a figuras de autoridade com discursos radicais pode ser avaliado como sintomático do alcance prematuro (?) dos limites da liberdade, já preconizado por Tocqueville no século XIX, e com reflexos na demanda hedonista, inércia individual e delegação dos poderes a líderes que valorizam qualquer coisa – num espaço social onde se reclama abertamente pela escassez de valores, sejam eles quais forem. Outras explicações preferem justificar a radicalização xenófoba/misógina/discriminatória como um produto de uma economia desfavorável – de facto, para o ser humano a perda tem um maior impacto psicológico do que o ganho económico (que o digam os estudos clássicos do laureado Daniel Kahneman).

Apesar de válidas, estas explicações não esgotam o fenómeno da banalização do ódio e da hostilidade para com aqueles que apresentam determinadas características. Devemos atentar a um aspecto fundamental: à nossa vida num espaço onde interagimos com outros, em relações de interdependência e susceptíveis à influência.

Muito embora controversa, Hannah Arendt ilustrou numa das suas obras mais discutidas (“Banalidade do Mal”) a importância de estarmos atentos à facilidade com que nos submetemos à influência de figuras de autoridade; de nos conformarmos a discursos de terceiros porque não nos sentimos suficientemente informados; ou pela mera necessidade de aprovação social. Nesta obra, Arendt apresenta Otto Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto e responsável pela morte de milhares de judeus, não como um homem com traços sociopatas, mas antes como um homem que simplesmente obedeceu às ordens de uma figura de autoridade. Os julgamentos morais parecem-se deturpar quando estamos perante figuras “carismáticas”, que o digam os famosos e controversos resultados do estudo de Stanley Milgram (1963), entretanto replicado em 2009 por Jerry Burger. De forma muito resumida, tanto Milgram como Burger demonstraram que sob ordens de uma figura de autoridade, e independentemente de características individuais como os níveis de empatia, a esmagadora maioria das pessoas daria choques (que não sabiam serem falsos) dolorosos – ou até fatais, a outro ser humano só porque tal lhes era exigido por uma figura de autoridade.

A banalização de um discurso motivado pelo ódio em razão de características como atributos físicos, origem étnica, sexo, orientação sexual ou identidade de género parece então ser um recurso utilizado por dissidentes (anti-sistema) para chegar aqueles que não estão satisfeitos com algum aspecto das suas vidas, mesmo quando estes dissidentes - que se dizem anti "status quo" - aparentam (ou são) pouco credíveis. Estes novos líderes que banalizam o discurso de ódio aproveitam-se da apatia generalizada em favor da ruptura com a coerência da maioria, socorrendo-se a um discurso que vai em contracorrente com o resultado lógico da globalização. Pior ainda, aproveitam-se de fenómenos sociais básicos que caracterizam a vida em comunidade, influenciando-nos com a sua carismática autoridade.

Tal como foi solicitado recentemente pela Polícia Judiciária aquando da detenção de um grupo de dezassete "skinheads" nacionais e entretanto acusados de crimes de ódio e de incitarem à discriminação, importa identificar e denunciar estes crimes e discursos. É urgente consciencializarmo-nos de que somos facilmente e naturalmente influenciados por discursos radicais e motivados pelo ódio e pela hostilidade. É urgente sinalizar estes comportamentos para evitar uma banalização e legitimação generalizada do ódio. 

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