O corpo de Iggy Pop é história de arte

Uma das presenças mais extenuantes do rock posou nu no Brooklyn Museum aos 69 anos. Para partilhar o que lhe tinha acontecido ao corpo, “antes de tudo terminar”. Para aguentar ficar imóvel durante as poses, cantava em silêncio as suas canções.

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Os 22 desenhadores que participaram na aula foram seleccionados de um conjunto de escolas de Arte em Nova Iorque. A ideia é garantir diversidade, “como se se tratasse de uma parte representativa da América a olhar para Iggy Pop”. Os escolhidos têm entre 19 e 80 anos de idade e incluem estudantes, artistas profissionais e reformados Elena Olivo/Brooklyn Museum

Quando Iggy Pop sobe ao palco do auditório do Brooklyn Museum, numa noite de Outono em Nova Iorque, sabemos que imagem esperar, não fosse ele uma das figuras mais emblemáticas do rock americano. Não é só o cabelo louro, as calças pretas e o tronco nu a fazer parte de um imaginário; há também a linguagem corporal — reptilínea — imortalizada por fotógrafos como Mick Rock. Foi exactamente esse simbolismo que o artista inglês Jeremy Deller quis explorar quando convenceu Iggy a posar nu numa aula de Desenho; e é sobre isso que ambos conversam com o poeta Tom Healy, moderador habitual das Brooklyn Talks. Muitas das pessoas estão ali, no Brooklyn Museum, para ver Iggy Pop. Mesmo sabendo que não irá tocar: são as referências aos The Stooges ou as histórias que acabará por contar sobre o primeiro concerto que viu de Jim Morrison que fazem vibrar. Mas Iggy está ali também para falar sobre o momento em que o seu corpo passou a ser considerado história da arte.

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O “não movimento” da pose surge como contranatura para Iggy e o próprio assume que foi difícil ficar quieto. A fórmula que encontrou foi começar a “tocar” as suas próprias canções, em silêncio Elena Olivo/Brooklyn Museum
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Elena Olivo/Brooklyn Museum

Quando Jeremy Deller apresentou a proposta a Anne Pasternak, directora do Brooklyn Museum, ela nem precisou de ouvir muita coisa: “Ele disse-me que tinha uma ideia e aceitei.” Já tinham trabalhado juntos quando Pasternak (na altura presidente e directora artística da Creative Time) foi a comissária, com o New Museum, de It Is What It Is: Conversations about Iraq (2009). O projecto procurava estimular o diálogo sobre a situação no Iraque, propondo que jornalistas, soldados e refugiados conversassem sobre as suas experiências com os visitantes da exposição. Agora voltaram a colaborar para que o conceito de Deller tomasse forma. No quinto andar do museu encontra-se  Iggy Pop Life Class — a exposição que o artista assina e que pode ser vista até Março de 2017. São 53 desenhos do corpo de Iggy Pop, expostos em paralelo com umw conjunto de objectos que exploram o corpo masculino, de esculturas egípcias, africanas e indianas a peças de Egon Schiele e fotografias de Robert Mapplethorpe e Jim Steinhardt. O objectivo era criar um contexto histórico, olhando para a evolução das representações profanas e sagradas do corpo do homem.

Depois de expostos, os desenhos ficarão na colecção do museu. Deller queria que ficassem juntos, servindo como documento essencial do corpo icónico de Iggy. “A música rock é provavelmente o melhor que a América ofereceu ao mundo, e o corpo de Iggy é o ícone máximo desse universo. Para mim, era importante que fosse documentado de uma forma diferente e que passasse a fazer parte da história da arte. O facto de pertencer agora ao arquivo do Brooklyn Museum faz com que seja como uma retribuição, uma forma de agradecimento à América”, explica-nos no dia anterior à palestra, em frente aos detalhes, a carvão, do corpo que — acredita — mudou também a forma como olhamos para o nu masculino. “O rock contribuiu para que se normalizasse a beleza masculina nos tempos modernos. Iggy tem um dos corpos mais reconhecidos, um corpo que não só é fundamental para a compreensão da música rock, mas que foi exibido e celebrado ao longo dos anos de forma invulgar para o homem, e que testemunhou muita coisa. O seu corpo é praticamente um instrumento e o modo como o usa é uma forma de comunicar.”

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Iggy diz que a certa altura começou a pensar como estava vulnerável. “Especialmente numa posição em que o meu pénis se mostrava caído e a barriga cheia de peles, mas aquele é o meu corpo que tanto viveu e presenciou” Elena Olivo/Brooklyn Museum
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Elena Olivo/Brooklyn Museum

Animal de palco

Na verdade, foi há quase meio século que Iggy apresentou o seu torso nu como parte central da sua arte e desde então tem vindo a mostrá-lo sem restrições. Desde os seus 20 anos que é um animal de palco, tornando-se conhecido pelas performances extenuantes e imprevisíveis, altamente físicas, agressivas até. Parece impossível imaginá-lo agora a posar durante quatro horas. Esse “não movimento” surge como contranatura e o próprio assume que foi difícil ficar quieto. A fórmula que encontrou foi começar a “tocar” as suas próprias canções, em silêncio: “Não queria ter uma expressão que não passasse qualquer emoção e também não queria estar a pensar quanto tempo teria passado, por isso, quando me disseram que determinada pose ia durar 5 minutos, eu decidi tocar na minha cabeça I wanna be your dog, porque sabia que aquela versão tinha 3 minutos e 22 segundos” — conta Iggy perante uma audiência que continua a regozijar-se com cada referência musical.

Deller queria ter feito esta exposição há dez anos, mas, quando o abordou, Iggy recusou. Dez anos depois fez exactamente o mesmo convite e o músico disse que sim. Iggy justifica a inicial recusa: “Era muito novo na altura [agora tem 69 anos] e sentia que não tinha esse peso. Agora sinto que aconteceu muita coisa com e ao meu corpo. Por alguma razão, senti que era importante posar nu para um grupo de pessoas e ter essa partilha.” Quando, num domingo de Fevereiro, entrou na New York Academy of Art para materializar o conceito de Deller, Pop estava pronto para essa vulnerabilidade de mostrar o seu corpo envelhecido: “Era importante ficar confortável neste fato que me deram à nascença antes de tudo terminar. Além disso, cada vez mais recuso fazer fotografia — não gosto da forma como se fotografa hoje em dia —, é muito automática, maliciosa até, mas achava importante documentar o que resta de mim. Quando toco, tenho de me entregar, técnica e emocionalmente, mas, neste caso, só tinha de me pôr nas mãos deles e esperar pela sua performance.” Os 22 desenhadores que participaram na aula foram seleccionados por Deller e por Sharon Matt Atkins (vice-directora do museu) de um conjunto de escolas de Arte em Nova Iorque. Ambos queriam garantir diversidade, “como se se tratasse de uma parte representativa da América a olhar para Iggy Pop”. Os escolhidos têm entre 19 e 80 anos de idade e incluem estudantes, artistas profissionais e reformados.

A identidade do modelo que posaria nu só viria a ser revelada um ou dois dias antes da aula, e se alguns dos participantes eram fãs de Iggy Pop, outros nem sabiam quem era. Jeanette Farrow, uma das artistas, confessa que ficou impressionada com a capacidade de imobilidade do músico. “Foi impressionante, uns segundos antes dizia-nos: ‘Agora a campainha vai sinalizar que o tempo acabou.’ E saber que ele estava a tocar os acordes das suas canções é incrível.” Já Robert Reid teve de pesquisar sobre quem seria Iggy Pop: “Sou mais ligado ao jazz. Fui para casa ver quem era, mas também pensar qual seria o melhor material para desenhar alguém que não está habituado a posar, porque tem de se antever a hipótese de o modelo se mexer.” Continua: “Não me influenciou saber ou não quem era, mas foi uma boa aula; a energia e a tensão que se sentiam na sala, o silêncio. Sabíamos, de alguma forma, que era oportunidade única.” Levan Songulashvili veio da Geórgia para estudar na New York Academy of Art e diz-nos que há uns anos era difícil imaginar que viria a desenhar a estrela rock. “Quando tentei representar a figura de Iggy Pop, senti que tinha de ir além do que via; precisava também de captar a voz da música rock.” Acrescenta: “[Iggy] trabalhou como um modelo profissional, não parecia que era a primeira vez que fazia isto.”

A consciência que o músico tem do seu corpo é algo que muitos deles sentem que influenciou a forma quase metódica como posou. Iggy diz que a certa altura começou a pensar como estava vulnerável: “Especialmente numa posição em que o meu pénis se mostrava caído e a barriga cheia de peles, mas aquele é o meu corpo que tanto viveu e presenciou.” Depois viaja nas suas memórias e transporta-nos para o Michigan, para os seus 19 ou 20 anos, quando viu Jim Morrison pela primeira vez: “A melhor performance que vi dele foi nessa altura; de repente, estávamos perante alguém que tinha uma sensibilidade diferente da masculinidade a que estávamos habituados na música e foi por isso que foi revolucionário.” Iggy voltará à juventude mais tarde, quando fala dos seus tempos em Brooklyn: “Vim para aqui porque já não tinha dinheiro para viver em Manhattan, estava pobre, mas em Nova Iorque há sempre uma necessidade de keep going, mesmo que estejas a viver numa pequena gaiola na cidade ou num apartamento sem aquecimento em Brooklyn.”

É este Iggy que os fãs vieram ver, e o realismo de um corpo nu, envelhecido, de um homem de 69 anos, especialmente quando se trata de um ícone de um movimento rock, é controverso. Deller relembra que, quando saíram as primeiras fotos da aula, no início do ano, houve reacções de crítica nas redes sociais: “As pessoas questionam: ‘Porquê olhar para um corpo velho, um corpo que supostamente já não é bonito?’ E isto faz-nos reflectir também sobre o que é ser mulher. O corpo feminino está constantemente a ser alvo de críticas.” Iggy Pop Life Class é uma das dez exposições que integram o programa A Year of Yes: Reimagining Feminism at the Brooklyn Museum e Atkins justifica a escolha: “O uso que Pop faz do seu corpo e a abordagem de Deller criam a oportunidade não só de discutir a masculinidade, mas também de reflectir sobre o feminismo e sobre a ideia de um corpo ideal.”

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