Vamos descobrir o manjar branco da Infanta D. Maria

Partindo das mais importantes obras de cozinha dos últimos cinco séculos em Portugal, Guida Cândido transpõe 50 receitas para os dias de hoje. Um livro que nos faz descobrir sabores esquecidos, do século XVI ao século XX, e perceber como o gosto muda ao longo dos tempos.

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A que saberia o manjar branco, feito de peito de galinha, arroz, leite e açúcar, receita que fazia parte do livro de cozinha que a Infanta D. Maria de Portugal levou consigo, em 1566, quando, depois do casamento, se instalou em Itália? E como se fariam na época os beilhós de arroz, parecidos com os que ainda hoje se fazem no Norte por altura do Natal? E que curioso o uso, no século XVI, das especiarias, como o gengibre, o açafrão e os coentros, no recheio dos pastéis de carne.

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A que saberia o manjar branco, feito de peito de galinha, arroz, leite e açúcar, receita que fazia parte do livro de cozinha que a Infanta D. Maria de Portugal levou consigo, em 1566, quando, depois do casamento, se instalou em Itália? E como se fariam na época os beilhós de arroz, parecidos com os que ainda hoje se fazem no Norte por altura do Natal? E que curioso o uso, no século XVI, das especiarias, como o gengibre, o açafrão e os coentros, no recheio dos pastéis de carne.

E ainda nem saímos das primeiras páginas de Cinco Séculos à Mesa (ed. Dom Quixote), que acaba de ser lançado e no qual a investigadora Guida Cândido parte dos cinco livros que constituem (pelo menos os três primeiros sem qualquer dúvida) o cânone dos livros de receitas em Portugal nos séculos XVI (O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal), XVII (Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, cozinheiro de D. Pedro II), XVIII (Cozinheiro Moderno, de Lucas Rigaud), XIX (O Cozinheiro dos Cozinheiros, de Paul Plantier) e XX (O Livro de Mestre João Ribeiro).

As cinco obras são conhecidas e estão editadas, mas o que Guida Cândido faz, partindo dessa curiosidade de conhecer os sabores de cada uma das épocas, é cozinhar 50 receitas seleccionadas — algumas executadas por ela própria, outras com o apoio do restaurante Casa dos Suecos, na Figueira da Foz.

Conversando com o P2 por telefone a partir da Figueira, onde vive, explica que os três primeiros livros são, de facto, incontornáveis. Quanto aos outros dois, considera serem escolhas mais pessoais. “Em relação aos séculos XIX e XX, podia ter feito outras escolhas mas acho que Plantier também acaba por ser incontornável. E é curioso porque ele não é um cozinheiro — era relojoeiro — mas sim um gastrónomo que se relacionava com homens das artes, do jornalismo, da política e juntamente com eles reuniu uma série de receitas”, afirma.

No que diz respeito ao Mestre João Ribeiro, que foi cozinheiro do Hotel Aviz (e de Calouste Gulbenkian), admite que possa ser “a escolha mais polémica”, até porque se trata de uma época em que os livros de receitas se tornaram bastante mais comuns. “Temos, por exemplo, o do Olleboma, nome usado por António Maria de Oliveira Bello, criador da Sociedade Gastronomia Portuguesa e que, julgo poder dizer, foi o primeiro gastrónomo que tentou ir às origens da cozinha portuguesa aprofundando a questão dos regionalismos, tentando perceber o que se come nas diferentes regiões.”

Apesar disso, a opção por João Ribeiro — que nunca escreveu nenhum livro, tendo as suas receitas conhecidas sido compiladas pelo autor e crítico gastronómico José Quitério — é “quase em jeito de homenagem, por ser um nome um pouco esquecido”, justifica Guida Cândido. “É uma figura curiosa que carrega a tradição da cozinha francesa mas não esquece as origens.”

Influência francesa

E qual é, afinal, o sabor de cada um destes séculos? Os primeiros livros transportam-nos para uma cozinha que era a das classes privilegiadas. “Na época medieval, e mesmo na moderna, havia um uso acentuado das especiarias, não só por questões de gosto mas de conservação dos alimentos”, sublinha a autora.

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Mas, apesar de hoje haver acesso a ingredientes que não se usavam na época em Portugal, “perderam-se muitas coisas”. “A panóplia de vegetais que eram usados, de peixe, de peças de carne, de caça, mesmo de capoeira era enorme e teve tendência a diminuir. Temos hoje mais técnicas de preparação, meios para conservar os alimentos e acesso a tantos outros, mas parece que, apesar disso, nos concentrámos num número mais reduzido.”

O estudo destes livros também nos permite perceber que coisas que vemos como tendências actuais são, afinal, muito mais antigas. É o caso das manteigas aromatizadas (com anchovas, por exemplo), uma das receitas de Lucas Rigaud que Guida Cândido reproduz. Ou as águas aromatizadas com frutos que o francês — grande crítico do livro anterior, de Domingos Rodrigues, e que se apresenta como o divulgador de uma cozinha mais moderna — também ensina a fazer.

Não é por acaso que o seu livro, publicado em 1780, tem como título Cozinheiro Moderno ou a Nova Arte de Cozinha. Há nesta mudança de gosto do século XVII para o XVIII, e muito por influência francesa, “o abandono do uso intensivo das especiarias exóticas e condimentos e o afastamento progressivo dos molhos acres em benefício dos cremosos e amanteigados, beneficiando e enaltecendo o sabor natural dos alimentos […]”, escreve a autora.

A partir das receitas reproduzidas por Guida Cândido, percorremos então as tendências de cinco séculos. Podemos fazer uma primeira paragem no século XVI para, com a Infanta D. Maria, aprendermos a fazer uma espécie de fatias douradas, aqui chamadas “ovos mexidos”, prato doce, “indo ao encontro do gosto da época, em que o uso de açúcar e especiarias, como a canela, entram na generalidade dos pratos”, e que leva também água de flor de laranjeira.

No século seguinte, pela mão de Domingos Rodrigues, podemos experimentar os pickles da época com beringelas em achar, molho, à base de vinagre, que serve para fazer conservas, e que leva também canela, pimenta, gengibre, grãos de mostarda e noz-moscada ralada. Com Lucas Rigaud temos, entre outras coisas, umas “ostras de comadres”, com miolo de pão, leite, anchovas, chalotas, manteiga e gemas de ovos.

De Paul Plantier pode-se cozinhar uns muito simples ovos com pontas de espargos ou as beterrabas com ervas finas ou ainda as águas de frutas, que podiam, todos eles, ser pratos de hoje. E, por fim, ajudados pelo Mestre João Ribeiro, temos a oportunidade de nos aventurar em pratos clássicos como o bife tártaro à Aviz ou uma bisque fria de gambas ou lagostins.

Todas as receitas são acompanhadas de textos de enquadramento e, no início, o livro inclui ainda uma breve história da alimentação, da Antiguidade Clássica à Época Contemporânea — Guida Cândido concluiu em 2014 o mestrado em Alimentação — Fontes, Cultura e Sociedade da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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O gosto de hoje

A transposição destas receitas para as cozinhas de hoje teve muito de tentativa e erro, sobretudo para os primeiros dois livros. Com fornos modernos, há, claro, uma diferença dos tempos de cozedura. “Tive mais dificuldade nas técnicas e tempos de cozedura do que na leitura das quantidades, apesar das diferenças que existiam”, conta Guida Cândido. Fez muitas outras tentativas, que acabaram por não ser incluídas e que “dariam quase um outro livro”. Quis, sobretudo, que fossem pratos que soubessem bem a quem os provasse com o gosto de hoje.

E, garante, há surpresas. O manjar branco, por exemplo. “Hesitei muito em incluí-lo. Hoje em dia continua a fazer-se o manjar branco mas não como se fazia no tempo da Infanta, com peito de galinha, o que pode parecer estranho num doce.” Foi fazendo e dando a provar. “Sem saber o que estavam a comer, as pessoas gostavam muito, diziam que lhes fazia lembrar o arroz-doce. O peito de frango está tão desfeito que ninguém pensa em carne. O esforço foi esse: ir ao encontro do que se gosta, mas dar oportunidade de se descobrir sabores de outras épocas que, afinal, não estão assim tão arredados da nossa cultura gastronómica.”