O politicamente correcto: Mao contra-ataca

“Liberdade sim, mas sem ofender”, bem podia ser o "slogan" do politicamente correcto. Mas o politicamente correcto não surgiu com esse intuito

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Paul Proshin/Unsplash

Rara é a vez em que um debate sobre liberdade de expressão não se transforma num debate sobre o politicamente correcto. Basta que se inicie uma conversa com o tema “deve-se fazer piadas sobre Maomé?”, e não demora até que alguém use a frase “liberdade sim, mas sem ofender.”

Cada vez mais vinga a ideia de que temos de ser protegidos de determinadas situações no nosso quotidiano, como se fossemos crianças não preparadas para as enfrentar. Substituem-se termos como “anão” por termos cuidadosamente criados como “pessoas de pequena estatura” para evitar qualquer estigma que um eventual anão possa vir a sentir. Mas na verdade o termo “anão,” de “nanismo,” designa uma condição genética, enquanto o termo “pessoas de pequena estatura” não só é mais longo como mais impreciso. Tudo porque “liberdade sim, mas sem ofender” — e nunca sabemos o que pode ofender, nem quem se pode sentir ofendido.

É que ofender alguém é muito mais fácil do que se pensa, mesmo sem qualquer intenção. Um entrevistador que se ria das baboseiras ditas pelo entrevistado será ameaçado de morte simplesmente por se ter rido. Uma figura pública que utilize as redes sociais para apelar à ajuda aos animais libertados durante um incêndio será logo brindada com umas quantas virgens ofendidas que clamam “Ajudem mas é os seres humanos!”. Já para não falar das pessoas que queimam livros — o que por si só já é uma ideia preocupante – e ameaçam de morte o autor. Torna-se assim complicado seguir à letra o princípio “liberdade sim, mas sem ofender”: se há ofensa, tira-se a liberdade?

Neste momento é tabu, nas universidades, especialmente anglófonas, mas cada vez mais nas portuguesas, o debate de temas da actualidade ou que possam ser considerados incómodos. Ao mesmo tempo, em universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos da América são proibidas obras que envolvam cenas de violações ou agressões, por poder haver entre os estudantes vítimas dos mesmos males. É como se fizessemos uma lista daquilo que se pode aprender na universidade e riscássemos grande parte da História. “Liberdade sim, mas sem ofender”, bem podia ser o "slogan" do politicamente correcto. Mas o politicamente corecto não surgiu com esse intuito.

O termo foi cunhado no início do século XX por Mao Tsé-tung para definir todo o pensamento que não estivesse de acordo com a doutrina do Partido Comunista Chinês. Mais tarde, o termo foi apropriado pela “Nova Esquerda” americana e europeia (feministas, progressistas, defensores dos direitos cívis) na defesa de uma linguagem neutra em termos de discriminação que evitasse ser ofensiva para certas pessoas ou grupos sociais. Surgia assim o princípio de “liberdade sim, mas sem ofender” — uma linha que separa tudo aquilo que nos é permitido dizer de tudo o resto que pode ofender alguém.

O politicamente correcto surgiu com o intuito explícito de limitar a liberdade de expressão às ideias aprovadas pelo Partido Comunista Chinês. Hoje, vinga a ideia paternalista de que temos de ser protegidos de tudo aquilo que nos possa ofender. Canções, peças de teatro, piadas e até determinadas palavras vão entrando para a categoria de politicamente incorrectas e socialmente reprováveis. Não tarda muito e teremos uma lista de tópicos que podemos discutir, músicas que podemos ouvir e filmes que podemos ver. Uma ideia maoísta aplicada ao século XXI. Será que é numa sociedade assim que queremos viver? Será tão difícil de perceber que se está a criar autentico um monstro capaz de derrotar a liberdade de expressão? Ou será, talvez, esse o objectivo?

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