Devemos defender o direito a não estarmos ligados

Comportamentos aditivos, como o são certas utilizações da tecnologia, colidem frequentemente com a esfera laboral, escolar, afetiva e familiar

Foto
Dustin Lee/Unsplash

O mundo atual é realmente admirável… A qualquer momento posso, através do meu smartphone, fazer os gestos que até há bem pouco tempo só seriam possíveis num computador fixo ou num portátil: consultar o meu mail; ver a minha conta bancária; efetuar pagamentos; ouvir músicas, entre muitas outras possibilidades. A evolução sucede a um ritmo tão rápido que acaba por desatualizar as próprias palavras. Dei com a seguinte incongruência: li, num quadro comparativo de um espaço comercial, um portátil classificado como um dispositivo sem grande portabilidade… (isto, comparando com tablets, smartwatch e outros dispositivos que tais).

Estamos perante uma explosão tecnológica de tal dimensão e velocidade que são as próprias palavras com que batizamos os aparelhos que se tornam obsoletas. Da mesma forma, a apropriação social que deles fazemos está em constante mutação, saltando à vista uma conetividade cada vez maior, mais imediata, a conteúdos e funcionalidades cada vez mais diversificados.

Este excesso de conectividade já se vai traduzindo no aparecimento de comportamentos e estados mentais problemáticos. De uma forma ou de outra, surgem cada vez mais novos nomes para tentar balizar esses comportamentos, tais como dependência à internet; perturbação do uso da internet inespecífica ou específica — isto é, se circunscrita ou não a um site ou conjunto bem definido de sites.

A dificuldade em traçar um ponto de divisão de águas, em termos do número de horas semanais utilizadas por forma a identificar um utilizador problemático, é bastante difícil: trata-se de um uso indevido ou um uso em termos profissionais? Em que medida essa utilização interfere com outras esferas da vida da pessoa? Como delinear um limite se cada vez mais estamos todos mais tempo ligados à net e utilizamos mais dispositivos tecnológicos?

Por outro lado, o cruzamento desta evolução com a disseminação das redes sociais torna explosivos todos os nossos gestos. Tudo se pode rapidamente publicar e, assim, transformar em espetáculo, os mais ínfimos pormenores do nosso quotidiano.

Será a selfie também uma doença?… Pelo menos podemos considerá-la desse modo em certos casos: como uma forma de não estar num determinado lugar. Ou num exemplo concreto: quando muitos adolescentes passam o recreio a olharem para aplicações em ecrãs, não estar a socializam com pares e não enfrentam uma tarefa desenvolvimental própria da sua idade.

Quando um determinado comportamento invade em demasia a nossa vivência, acaba por colidir com outras dimensões do nosso quotidiano … Assim, comportamentos aditivos, como o são certas utilizações da tecnologia, colidem frequentemente com a esfera laboral, escolar, afetiva e familiar. Penso que Antonio Porchia escreveu um aforismo que pode sintetizar lapidarmente a questão: "Se se observar sempre a mesma coisa não é possível vê-la".

Com isto chegamos a um direito que queremos afirmar nesta crónica: da mesma forma que se advoga o direito ao esquecimento, deveremos defender o direito a não estarmos ligados e, sobretudo, a modular a intensidade da nossa ligação ao mundo virtual.

Muitos de nós já exercem muito dos pressupostos que um eventual direito à não conetividade poderia implicar: não atender imediatamente o telemóvel; cultivar um certo afastamento no que concerne à utilização das redes sociais; não responder a determinados mails, entre outros exemplos… Outros escolhem mesmo não ter contas em redes sociais ou possuir telemóveis, ou dispositivos tecnológicos do género, que não ofereçam tantas oportunidades.

Poderemos num futuro próximo estar perante um movimento vintage, para lhe apor um label na moda, que possa consubstanciar algumas destas tendências de afastamento?

Sugerir correcção
Comentar