Se a loucura pudesse ser bela

Apreciar e conhecer um pouco mais os nossos loucos talvez nos fizesse aprender a lidar melhor com os nossos próprios distúrbios — e os daqueles que amamos

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towbar/Pixabay

Na rua onde passei toda a minha infância, é costume deambular um senhor dos seus oitenta e tal anos. Sempre o conheci velho e não consigo imaginá-lo de outra forma que não seja com aqueles traços rugosos e cabelos esbranquiçados. Da boca que nunca se cala, saem-lhe impropérios, seja a quem passa ou simplesmente ao ar que respira. "É doido", sempre ouvi dizer, mas algo mais me fascina nele. Temo-o? Sim. Mas gostava de o conhecer melhor, aprender com a sua loucura. Do mesmo modo me atrai o comportamento de uma tia afastada que agora já nada pode fazer contra o Alzheimer. Mas tempos houve em que, se não fosse diagnosticada como perturbação mental, a sua condição poderia ser igualmente confundida com uma genialidade artística ou uma ingenuidade infantil. O fascínio, o meu, lá se mantinha.

Essa atracção pelo louco faz-me questionar a interacção que (não) temos com os nossos doidos — a Organização Mundial de Saúde já lhes arranjou novas nomenclaturas, mas creio que a limpeza vocabular raramente nos ajuda, retirando até a beleza poética aos nomes que utilizamos. Não os aceitamos como uma parte da nossa própria natureza, controlamo-los através da clausura e procuramos saber deles o menos possível. Isto torna-se ainda mais evidente — e perigoso — quando temos a mesmíssima atitude para com os nossos próprios laivos de doideira e para com a doença mental com a qual convivemos.

Recentemente chegado às bancas, "Uma Dor Tão Desigual" resulta de uma parceria entre a Ordem dos Psicólogos e oito dos melhores escritores lusos para que se pudessem explorar as diferentes variantes dos distúrbios psicológicos, dos mais graves aos mais banais (mas não menos destrutivos). Afonso Cruz, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, Joel Neto, Maria Teresa Horta, Nuno Camarneiro, Patrícia Reis e Richard Zimler entregam-nos de bandeja contextos (ficcionais, na sua maioria, embora Joel Neto se inspire num caso real e intenso) que nos mostram o quão asfixiante pode ser a doença — e quanta diferença faria uma sensibilidade refrescante. É o mesmo ensinamento de sempre: se queres saber todas as verdades da vida, refugia-te numa boa obra de ficção.

Esta glamourização da loucura na cultura popular não é nova — lembro-me, assim de repente, do amor que temos por Hannibal Lecter ou a paixão assolapada que o outro "serial killer" Dexter nos causa —, e talvez até ajude a humanizar a loucura. No entanto, na vida comum, existe esta fronteira que mantém nas artes o que às artes diz respeito. Quando saberemos abraçar os nossos loucos, em vez de nos calarmos quando dizemos que estamos com uma depressão ou que a tia-avó tem Alzheimer? A sabedoria, além de tudo o resto, torna-nos mais sensíveis, e é isso que devemos almejar enquanto humanos.

E, às tantas, a loucura até é bela, só que nós não damos conta. Afinal de contas, já é um lugar-comum aquilo que Alain de Botton disse um dia, que todas as pessoas são normais até ao dia em que as conhecemos um pouco melhor. Apreciar e conhecer um pouco mais os nossos loucos talvez nos fizesse aprender a lidar melhor com os nossos próprios distúrbios — e os daqueles que amamos. Tirar esqueletos do armário e caçar fantasmas só pode dar bom resultado, como tão bem nos tem ensinado a experiência ao longo dos últimos milénios.

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