Madame Ângela, a professora que sabia ouvir

Ângela Miguel acaba de nos deixar. Mas para mim, que fui sua aluna no Liceu Francês até 1963, ano em que parti para Israel, a Madame Ângela continua a fazer parte do que sou hoje, alguém que me ajudou a crescer.

“Limitei-me a ser uma simples professora de História…”. As palavras pertencem a Maria Ângela Montenegro Miguel numa entrevista dada à revista Noesis em 1999, a propósito da obra de Rui Grácio, seu marido.

Ângela Miguel acaba de nos deixar. Mas para mim, que fui sua aluna no Liceu Francês até 1963, ano em que parti para Israel, a Madame Ângela continua a fazer parte do que sou hoje, alguém que me ajudou a crescer. Discreta, delicada e serena, foi muito mais do que uma professora de História. Foi para mim a pessoa a quem no final das aulas eu confiava as minhas angústias existenciais de adolescente, certa da sua escuta atenta e paciente, certa que as minhas interrogações confusas teriam um eco nas suas palavras. Lembro o seu olhar doce que, tal como o recordo era de um cinzento esverdeado, o seu sorriso gentil, o seu cabelo negro apanhado deixando ver o rosto de traços finos. As suas respostas nunca eram perentórias ou definitivas. Muitas vezes as minhas dúvidas eram-me devolvidas, obrigando-me a repensá-las. Se isto é ser professora, então Ângela era uma professora maravilhosa.

Mas a verdade é que nunca teria ousado ou mesmo desejado confiar-lhe as minhas angústias, se as suas aulas não fossem um estímulo permanente. Muito mais do que nomes, datas e personagens, ensinava-nos a pensar a História, a estabelecer relações e nexos, a compreendê-la como obra humana. Foi com ela que aprendi a amar a História e essa paixão nunca me abandonou, embora não tenha feito dela nem profissão, nem formação académica.

Tal como o seu marido, Rui Grácio, e muitos outros professores do Liceu Francês, impedidos de ensinar nas escolas públicas, Ângela Miguel tinha profundas convicções anti-salazaristas e era, sem dúvida, uma defensora ardente da liberdade e a democracia. Mas nas suas aulas nunca procurava impor as suas ideias, elas eram-nos sugeridas pela sua própria visão humanista da vida, da importância que atribuía à justiça e à dignidade do ser humano livre e consciente.

Não faço do Liceu Francês Charles Lepierre de Lisboa um retrato idílico. As segundas-feiras não eram, demasiadas vezes, acolhidas com grande júbilo. Mas hoje tantos anos depois, sei que cresci no Liceu e com o Liceu. Foi lá que despertei para a vida e que tomei consciência da importância de uma sociedade livre e mais justa. Sei que muito do que fui ao longo da vida se enraíza nesses anos da adolescência. Mas a imagem e a memória da Madame Ângela sobrepõe-se a todas as outras. Lembro-a com ternura e com saudade. Lembro-a com infinita gratidão e com a consciência de quão importante ela foi para mim…

Ex-aluna de Ângela Miguel, Liceu Francês Charles Lepierre

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