A armadilha da interioridade

Os responsáveis políticos têm de assumir que não é possível combater a interioridade com menos Lisboa ou menos Porto.

Oiço, desde que me conheço, o discurso do combate à interioridade e à desertificação. Durante décadas muito se tem falado e muito se tem feito. Com poucos resultados. A desertificação agravou-se mesmo com todas as medidas artificiais — e muitas vezes demagógicas — que foram tomadas por sucessivos governos.

A culpa é da cultura “SimCity” que faz escola nos gabinetes governamentais. Lembra-se o leitor do popular jogo de computador dos anos 90 que nos colocava no papel de gestor de uma cidade? Pois é. Nesse jogo cabia-nos a função de construir uma cidade e dotá-la de todas as infraestruturas necessárias ao seu desenvolvimento. Da escola ao hospital, da esquadra de polícia ao centro desportivo, tudo era necessário para o sucesso da cidade, como se a cidade vivesse num universo próprio, estanque e esterilizado em que tivesse de garantir a sua independência e auto-subsistência. Tal qual o que acontece com o planeamento do país. Outra figura que gosto de recordar, com saudade, para ilustrar esta visão infantil do desenvolvimento territorial, é a de José Franco e a sua aldeia típica em Mafra, ou ainda a do Portugal dos Pequenitos em Coimbra.

Ora não podemos perder de vista que o território goza de uma particularidade interessante: não vivemos sós. Mesmo quando habitamos uma ilha podemos interagir e até usufruir das infraestruturas e serviços dos nossos vizinhos mais próximos. Foi esta última visão sobre a organização do país, contínuo e interligado, que o anterior governo aplicou na execução das enormes reformas ao nível do território, infraestruturas e serviços que levou a cabo. Passos Coelho liderou o primeiro e único governo desde 1974 a colocar a discussão onde ela deve estar: na separação entre territórios de baixa e alta densidade, em vez da clássica e arcaica distinção entre interior e litoral. Como consequência desse novo entendimento para o território, assistimos a uma redefinição do mapa judiciário, à redistribuição dos meios e infraestruturas de saúde, à extinção dos governos civis, entre muitas outras medidas enquadradas numa filosofia de racionalização de recursos e mobilidade territorial, capaz de garantir níveis de serviço ao cidadão com qualidade, proximidade e celeridade de resposta. O actual governo, numa ânsia desenfreada de desfazer tudo o que o “perigoso governo liberal de direita” implementou, veio prometer a reabertura de tribunais, escolas… enfim, tudo para todos, numa lógica sem lógica mas que garanta a simpatia e, já agora, o voto dos portugueses que vivem nessas regiões. O "SimCity" voltou a ser rei e senhor dos gabinetes. E o resultado é mais do mesmo: o interesse particular, ou a soma de pequenos interesses particulares, esmagam o interesse geral da nação.

Gostava de ir um passo mais longe nesta discussão. Também nela somos vítimas do politicamente correcto e do eleitoralmente certinho. Deixemo-nos de conversa mole e vamos pôr o dedo na ferida: os responsáveis políticos têm de assumir que não é possível combater a interioridade com menos Lisboa ou menos Porto. Muito pelo contrário, só podemos ganhar a batalha do desenvolvimento integral de Portugal quando percebermos, sem dogmas ou preconceitos, que áreas metropolitanas de Lisboa ou do Porto mais fortes e competitivas são o garante de um Portugal mais próspero e coeso. Um exemplo da má política, da que teima em combater a interioridade penalizando a capitalidade, foi a reestruturação do sector das águas. Essa mudança, contra a qual manifestei total desacordo, penalizava as grandes áreas metropolitanas numa lógica serôdia de dividir o mal pelas aldeias. O que há a fazer é precisamente o contrário: há que alargar dramaticamente as regiões de influência das duas grandes áreas metropolitanas, aumentando os seus “hinterlands”, dotando-as de infraestruturas de transportes rápidos, eficazes e baratos que permitam aproximar as regiões de baixa densidade. A água, o saneamento e todos os custos de contexto às actividades económicas devem ser competitivos em relação aos concorrentes directos que no caso são áreas metropolitanas como Madrid ou Barcelona e nunca por nunca Viseu, Guarda ou Beja. Metrópoles como Londres, Amesterdão ou Berlim são hoje pólos agregadores e catalisadores do desenvolvimento em órbitas de influência que vão muito para além dos 500km. Com boas redes de transportes é possível viver fora das grandes cidades e manter qualidade de vida. Eu não quero viver num país faz de conta onde empresários de Lisboa, com actividade em Lisboa, que consomem e usufruem das infraestruturas e serviços de Lisboa, acabam por registar as suas empresas fora de Lisboa para usufruírem de fundos que, paradoxalmente, existem para combater as desigualdades.

Não sou elitista, nem tão pouco sulista. Acredito nos portugueses, em todos eles de qualquer ponto do território, e no seu potencial. Cabe a nós políticos assumir as nossas responsabilidades, sem bairrismos, e ter como desígnio nacional o objectivo de fazer da AM Lisboa a maior e mais próspera da Península Ibérica, e da AM do Porto a líder inequívoca do noroeste do mesmo espaço geográfico, resgatando esse lugar às maiores cidades galegas. Só assim Portugal será mais coeso.

Gestor, Vice-Presidente da Câmara Municipal de Cascais

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